Mistérios do superendividamento do consumidor

*Ricardo Calil Fonseca

Segundo levantamento do Serasa Experian, no primeiro semestre de 2019, a inadimplência atingiu 63 milhões de consumidores brasileiros, marcando um recorde histórico[1].

Os múltiplos canais de informação na atualidade, especialmente o audiovisual, veiculando videoaulas  de educação financeira,  vieram pra ficar, e estão cada vez mais populares, prestando um bom serviço, inclusive sem custo aos usuários, a exemplo do youtube o mais popular deles,.

Mesmo com esta democratização de informações, os números mostram que há muito que aprender sobre a base da economia doméstica, cuja conta, aparentemente simples, é ensinada a todos, num ditado popular: ‘não gaste mais do que ganhe!’;  ainda assim, no final esta equação não fecha.

Excluindo desta análise, o cenário econômico, ou medidas macroeconômicas de governo que afetam o (des)emprego;  o  consumismo, possivelmente, é uma das causas, destas dificuldades, e se alimenta no mais das  vezes, de necessidades artificiais; criadas por uma espécie de engenharia social, que infiltra em nossas mentes, uma ‘vontade’ insaciável  de consumir.

Uma vez impregnadas em nossa mente estas necessidades artificiais,  advém a compulsão sem fim,  às vezes variando quanto ao objeto. E assim, em certos momentos sofremos por não ter o carro do ano; uma joia, ou o último smartphone lançado; nem sempre atentos à necessidade real e que não estoure o cartão de crédito ou o cheque especial.

Em 1818, já na fase da revolução industrial, porém, ainda sem uma infinidade de produtos no mercado, o filósofo Schopenhauer já intuía  que em algum momento, o querer, que até então servia a inteligência, acabaria sendo suprimido:  A obra última da inteligência será a supressão do querer, a cujos fins havia servido até então. [2]

Assim, nossa vontade, que a princípio deve se assentar na inteligência, na  razão, nos bons propósitos, se enfraquece, sendo substituída pela vontade do mercado, do mundo empresarial; que num primeiro momento vende sonhos, mas quiçá à custa de algum pesadelo.

O pensador polonês Zygmunt Bauman, falecido em 2017, se debruçou com afinco sobre o tema consumismo, em sua obra Vida para Consumo – A transformação das pessoas em mercadoria (2008).

Para ele, a submissão das pessoas às técnicas do marketing, ao consumismo, ocorre com o concurso do consumidor, desejoso de atrair a atenção e aprovação, no jogo da sociabilidade; que é absorvido com tal força, que deixamos de enxergar a linha divisória entre o produto e a pessoa –  pois os produtos que são encorajadas a colocar no mercado, promover e vender são elas mesmas[3]Numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e os contos de fada[4].

Atermo-nos às coisas simples da vida, pode ser uma fórmula mágica do bem viver.  Não com tal desapego, que certo dia lemos de um autor, e nos escusamos por não recordar a fonte: ‘adoro ir ao mercado pra ver a quantidade de coisas que não preciso”; mas com equilíbrio e planejamento, já que, no sistema capitalista que vivemos, não é possível viver ignorando suas regras.

*Ricardo Calil Fonseca é advogado. Presidente da Academia Itaberina de Letras e Artes (AILA).

[1]https://www.serasaexperian.com.br/sala-de-imprensa/inadimplencia-atinge-63-milhoes-de-consumidores-em-marco-e-bate-recorde-historico-revela-serasa-experian

[2] Schopenhauer.  O Mundo como Vontade e como Representação II, cap.  48)

[3] BAUMAN,  Zygmunt Vida para Consumo – A transformação das pessoas em mercadoria (2008), pág. 12,13.

[4] BAUMAN,  Zygmunt.  Obra citada, pág. 22.