A pandemia desconstituinte

*Laís Menezes Garcia

A maior parte do Brasil está completando um mês de quarentena, devido a pandemia causada pelo Covid-19. Começamos então a nos adaptar à nossa realidade temporária, a vida “online” está mais presente do que nunca, amigos e famílias se reúnem em chamadas de vídeo, trabalhamos na cadeira do nosso quarto e assistimos shows no sofá da sala.

O desconhecimento quanto ao vírus que parou o mundo, nos fez chegar ao desatino embate entre saúde pública e economia, que embora vistas como opostas no momento, estão mais conectadas do que nunca. A economia não é feita por CNPJs, mas sim pelos CPFs que estão por trás deles e com a saúde de toda a população ameaçada, toda a engrenagem para.

Outrossim, uma das principais questões neste período é quanto a manutenção das empresas, do emprego e da renda. As adaptações necessárias, extrapolam as casas que nos mantem em quarentena, é então necessário que as leis também façam parte desta adaptação, seguindo a urgência que o momento necessita e evitando um grande impacto social e econômico.

Medidas temporárias como as que já estão sendo adotadas pelo governo, são indispensáveis. Não há como enfrentar uma crise de proporção mundial sem as devidas adequações legislativas, mas sempre com a necessária observância constitucional. No âmbito trabalhista, foram publicas as Medias Provisórias 927 e 936, visando a manutenção dos contratos de trabalho.

A MP 936 trouxe a possibilidade de redução de jornada e redução de salário de modo proporcional e a suspensão de contratos de trabalho, através de acordo individual, sendo assim, objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade, instrumento no qual é utilizado no chamado controle direto da constitucionalidade das leis e atos normativos, exercido perante o Supremo Tribunal Federal, já que a Constituição prevê que tanto para redução de jornada, tanto para redução de salário, é necessário acordo ou convenção coletiva.

Ficamos então diante de um impasse: a preservação da Constituição em face da preservação de empregos. Apesar do STF já ter julgado pela validade da MP 936, ou seja, é lícita a redução salarial mediante acordo individual no período de calamidade pública, não significa que a Constituição tenha a sua vigência afastada em momentos de crise, pelo contrário, é o momento de fortalecimento dos princípios constitucionais.

Devido à emergência na saúde pública, que reflete diretamente na economia e na política do país, temos o importante papel de sermos vigilantes da Constituição, a fim de preservar a democracia, os direitos individuais e coletivos, já que a situação excepcional, tem levado parte da população, inclusive, a desacreditar nas instituições democráticas e a Carta Magna se vê mais uma vez ameaçada.

Devemos então, resgatar em nossas memórias, que a Constituição Federal completa neste ano, apenas 32 anos. Conhecida como Constituição Cidadã, por defender a igualdade, os direitos sociais, a dignidade humana e a liberdade, foi ainda a Constituição que firmou o fim de um período em que a democracia era quase um devaneio.

Apesar da necessidade de medidas emergenciais para equilíbrio da crise iminente, é necessária muita cautela para que tais medidas não possam abrir precedentes ou muito menos que se tornem mudanças permanentes nas relações de trabalho. O olhar no presente, deve ser sempre atento ao futuro.

As medidas emergenciais adotadas no período de calamidade pública, apesar de toda particularidade do momento, podem contrariar normas infraconstitucionais, como por exemplo a CLT, mas nunca podem contrariar a Constituição Federal, norma suprema do país.

Afinal, para situações extremas, a Constituição já prevê um tratamento excepcional por ela mesma disciplinado, como um conjunto de normas que, ao darem uma resposta controlada à crise, conferem proteção reflexa à própria Constituição, evitando-se que ela seja abandonada.

Entretanto, procedimentos excepcionais, como o estado de defesa e o estado de sítio, permitem por determinado período, a ampliação dos poderes públicos e a suspensão ou restrição de direitos e garantias fundamentais, sendo que a pandemia causada pelo Covid-19 não deve constituir circunstancia apta a ensejar decretação de medidas tão drásticas.

A constituição prevê ainda, em seu artigo 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas, sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Deste modo, o Poder Constituinte como um todo, tem sua atuação de modo a organizar o Estado, dividir os poderes e proporcionar a necessária defesa aos direitos fundamentais e personalíssimos consoante os ditames democráticos já estabelecidos. Todavia, tem-se observado constante crise política no Brasil, que mesmo em um caso de saúde pública, a polarização ainda é indubitável e pode afetar diretamente a Constituição.

Estamos presenciando a maior prova de resistência da nossa jovem Constituição Federal, e a sua preservação neste período de inseguranças jurídicas e sociais, fará com que o país saia da crise fortalecido e amparado, com instituições democráticas sólidas e um povo que poderá dar o segundo grito de liberdade graças a mesma Constituição.

*Laís Menezes Garcia é advogada especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário.