A nova jornada de trabalho da advocacia após a Lei 14.365/2022

No dia 02 de junho de 2022, o Presidente da República, no exercício de suas atribuições, publicou que o Congresso Nacional decretou e sancionou a Lei n.º 14.365/2022, legislação essa que possuiu como objetivo central a alteração das Leis n.º 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia), 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil) e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).

As diversas e variadas alterações realizadas pela nova lei trataram de uma série de questões, dentre elas as atividades privativas do(a) advogado(a), a fiscalização, a competência, as prerrogativas, as sociedades de advogados, o advogado(a) associado(a), os honorários advocatícios, os limites de impedimentos ao exercício da advocacia e a suspensão de prazo no processo penal.

Em meio a essa gama de inovações e alterações que se deram em decorrência da publicação da nova lei, uma que chama bastante atenção dos especialistas em direito do trabalho – e por que não, dos empregadores e empregados da advocacia – e que portanto merece ser debatida e analisada de forma criteriosa e crítica, é a que diz respeito às novas jornadas de trabalho (diárias e semanais) da advocacia brasileira. Principalmente no que refere às suas novas condições e limites de tempo, eis que tais mudanças impactam diretamente não somente os advogados contratados, como também aqueles que contratam esses profissionais essenciais à toda sociedade.

Antes de adentrarmos nos exatos termos da nova legislação, faz-se necessário ter mente de que forma o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), até então, tratava e versava sobre o tema em questão:  jornada de trabalho dos advogados.

A temática da jornada de trabalho encontrava-se prevista no artigo 20 do referido diploma legal e era elaborada nos seguintes termos:

Art. 20. A jornada de trabalho do advogado empregado, no exercício da profissão, não poderá exceder a duração diária de quatro horas contínuas e a de vinte horas semanais, salvo acordo ou convenção coletiva ou em caso de dedicação exclusiva.

A lei 14.365/2022 alterou a redação desse dispositivo, que passa a possuir a seguinte redação:

Art. 20. A jornada de trabalho do advogado empregado, quando prestar serviço para empresas, não poderá exceder a duração diária de 8 (oito) horas contínuas e a de 40 (quarenta) horas semanais.

Nota-se que, antes da publicação e da vigência da nova lei, a jornada de trabalho do advogado contratado possuía recorte especial para quando não havia cláusula de exclusividade (rotina na maioria absoluta das contratações) ou previsão de instrumento coletivo de trabalho, limitando a jornada em 4 horas diárias contínuas, totalizando 20 horas semanais. Nesse sentido, em respeito ao que até então era aplicável, o TRT da 22ª Região chegou a editar a Súmula de n.º 33, súmula essa que demonstra e exemplifica com clareza e precisão como o tema em questão era tratado pelo ordenamento jurídico. Vejamos:

Súmula 33 do TRT 22ª Região: ADVOGADO EMPREGADO. EMPRESA PÚBLICA OU SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. REGIME CONCORRENCIAL. JORNADA DE TRABALHO. A jornada de trabalho do advogado empregado, integrante de empresa pública ou de sociedade de economia mista, que atua em regime concorrencial, não poderá exceder a duração diária de quatro horas contínuas e a de vinte horas semanais, salvo acordo ou convenção coletiva ou em caso de dedicação exclusiva, esta expressamente prevista no contrato de trabalho, sendo asseguradas as horas excedentes (CF, art. 173, §1º, II, e Lei n.º 8.906/1994, art. 20, caput)

Sobre o assunto, também temos os ensinamentos do renomado doutrinador Luciano Martinez, que em sua obra “Curso de Direito do Trabalho – 12ª Edição”, afirma que:

Nos termos do art. 20, da lei 8.906/94, “a jornada de trabalho do advogado empregado, no exercício da profissão, não poderá exceder a duração diária de quatro horas contínuas e a de vinte horas semanais, salvo acordo ou convenção coletiva, ou em caso de dedicação exclusiva”. Esclareça-se que se considera como de “serviço efetivo real” todo o tempo em que o advogado estiver à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, no seu escritório ou em atividades externas. As horas trabalhadas que excederem a duração normal deverão ser remuneradas com um adicional nunca inferior a 100% (cem por cento) sobre o valor da hora normal, mesmo havendo contrato escrito. (MARTINEZ, 2021, p. 483)

Nota-se, portanto, que agora esse panorama foi totalmente alterado, eis que a lei n.º 14.365/2022 colocou fim à jornada de 4 horas, ou seja, não mais existe a limitação especial da jornada de trabalho de 4 horas diárias e 20 semanais quando não houvesse dedicação exclusiva ou negociação coletiva.

O que se pode dizer é que, inexistindo essa limitação legal, passar-se-ia à regra geral constitucionalizada da jornada de trabalho, que prevê jornada de 8 horas diárias e 44 horas semanais. Ocorre que o novo texto legal trouxe como novidade uma nova exceção legal para a jornada de trabalho da advocacia, que é o labor de 8 horas diárias e 40 horas semanais – o que até então inexistia. Se o antigo artigo 20 não limitava as horas semanais da jornada de 8 horas diárias, é porque seguia a regra geral constitucionalizada. Mas agora esse recorte especial semanal se faz presente no novo dispositivo, em que pese possuir recortes especiais.

Chama atenção o fato de antes da alteração legislativa o dispositivo falava expressamente na jornada de trabalho “no exercício da profissão”, ou seja, em qualquer modalidade de emprego em que se estivesse praticando advocacia. Agora, graças à nova redação, consta que os novos limites de jornadas aplicar-se-ão tão somente quando o advogado “prestar serviços para empresas”. Veja-se que temos então um comando mais delimitado e preciso, deixando de ser tão amplo como outrora.

A pergunta que se faz é: essa alteração seria de fato um recorte ou apenas uma mudança de terminologia? Em uma análise sem aprofundamento e reflexão, poder-se-ia argumentar que trata-se de mera terminologia, uma vez que é bastante comum a legislação trabalhista – e os próprios intérpretes – utilizarem o conceito de “empresa” como equivalente a “empregador”. Diante dessa análise, a conclusão seria que o advogado empregado passa a ter uma limitação especial de jornada de trabalho de 40 horas semanais, limitando-se a generalidade constitucional de 44 horas semanais.

Todavia, faz-se necessário ter consciência de que os sujeitos em questão (empresa e empregador), em que pese algumas eventuais semelhanças, possuem conceitos, direitos e obrigações diferentes, não podendo ser tratados como se sinônimos fossem, especialmente em um diploma legal absolutamente específico quanto ao tema.

Nas didáticas palavras do Professor Fábio Ulhoa Coelho, o conceito de empresa é:

Conceitua-se empresa como sendo atividade, cuja marca essencial é a obtenção de lucros com o oferecimento ao mercado de bens ou serviços, gerados estes mediante a organização dos fatores de produção (força de trabalho, matéria-prima, capital e tecnologia) (COELHO, Fábio. 2003)

Em contrapartida, o conceito de empregador, segundo o já citado doutrinador Luciano Martinez é:

o empregador aparece como sujeito concedente da oportunidade de trabalho. Ele pode materializar a forma de pessoa física, de pessoa jurídica (entes políticos, associações, sociedade, fundações, organizações religiosas, partidos políticos) ou até de ente despersonalizado, excepcionalmente autorizado a contratar (condomínios, massa falida, espólio, família etc). (MARTINEZ, 2021. p. 277)

Nota-se que enquanto o sujeito empresa é mais voltado para a atividade em si, exercida por uma pessoa jurídica, o empregador, por sua vez, pode ser materializado em pessoa física, em fundações, organizações religiosas, dentre outros tantos entes que eventualmente ofereçam oportunidades de emprego, demonstrando mais uma vez que empresa e empregador não podem ser tidos como sinônimos.

Não bastasse a evidente diferença existente entre empresa e empregador, é importante ressaltar que estamos diante de um diploma, como dito, específico – voltado a uma categoria que diferencia os conceitos de forma proposital em diversos momentos da legislação em si.

É importante destacar para essa diferenciação que os escritórios de advocacia não apenas não podem ser enquadrados no mesmo conceito genérico de empresa, mas possuem vedação expressa para tanto – com a proibição da mercantilização da advocacia – o que é essencial para a sobrevivência de uma atividade empresarial. Nesse sentido é a redação expressa do art. 16 do Estatuto da Advocacia:

Art. 16.  Não são admitidas a registro nem podem funcionar todas as espécies de sociedades de advogados que apresentem forma ou características de sociedade empresária, que adotem denominação de fantasia, que realizem atividades estranhas à advocacia, que incluam como sócio ou titular de sociedade unipessoal de advocacia pessoa não inscrita como advogado ou totalmente proibida de advogar.

Apesar da clareza solar, a título de exemplificação da referida vedação expressa de mercantilização dos escritórios, que contribuiu para com a diferenciação de escritórios de advocacia e empresas, bem como com o surgimento da dúvida exposta anteriormente, temos o seguinte julgado:

PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OAB. LEGITIMIDADE. PLANO DE SAÚDE JURÍDICO. EXERCÍCIO ILEGAL DE ATIVIDADE JURÍDICA. COMERCIALIZAÇÃO DE PLANO DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA A EMPRESAS POR EMPRESA JURÍDICA SEM REGISTRO NA SECCIONAL DA OAB/RS. MERCANTILIZAÇÃO DA ADVOCACIA. VEDAÇÃO LEGAL. I. A OAB detém legitimidade para ajuizar ação civil pública buscando a tutela de interesse coletivo da classe dos advogados ou visando à fiscalização do exercício profissional e o cumprimento de suas normas internas. I. As sociedades de advogados não podem exercer atividades de natureza mercantil. II. O Estatuto da Advocacia prevê as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas como privativas do advogado, assim considerado aquele regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil. Trata-se, portanto, de atividade de natureza personalíssima, não podendo ser exercida por sociedade empresária, mesmo que de forma indireta. III. Hipótese em que a empresa não está inscrita na OAB e capta clientes através de consultoria em gestão empresarial, evidenciando a intermediação, o que vem a caracterizar a imprópria mercantilização da advocacia. (TRF-4 – AC: 50284246220174047100 RS 5028424-62.2017.4.04.7100, Relator: ROGERIO FAVRETO, Data de Julgamento: 22/09/2020, TERCEIRA TURMA)

Fortalece-se a distinção também com o próprio registro das sociedades e empresas. Enquanto essas têm seus registros nas Juntas Comerciais, os escritórios de advocacia se submetem a legislação especial e efetuam seus registros junto à própria Ordem dos Advogados do Brasil de sua seccional competente.

Por último – mas não menos importante – é importante destacar a intenção real do legislador. Na lei 14.365/22 (ou em tanto trechos do próprio estatuto da OAB) percebe-se que o legislador traz expressamente a diferenciação de “empresa” e o termo “escritórios de advocacia” separados um do outro, em evidente e proposital distinção, senão vejamos a nova redação do §12 do art. 15 do Estatuto da OAB trazido pela Lei 14.365/22:

  • 12. A sociedade de advogados e a sociedade unipessoal de advocacia podem ter como sede, filial ou local de trabalho espaço de uso individual ou compartilhado com outros escritórios de advocacia ou empresas, desde que respeitadas as hipóteses de sigilo previstas nesta Lei e no Código de Ética e Disciplina.

Fica mais do que evidente nesse texto que a Lei separa muito bem “escritórios de advocacia ou empresas”

Nesse sentido, se a própria lei aponta e demonstra as diferenças existentes entre os escritórios de advocacia e as empresas, não é possível inferir equívoco do termo utilizado pelo legislador. Fica evidente a vontade do legislador em traçar recorte de jornada semanal nessa condição colocada na redação da nova legislação, ou seja, restrita apenas aos advogados que trabalham para empresas.

De toda forma, ainda que vencida a diferenciação evidente entre escritórios de advocacia e empresas e chegando à conclusão que o legislador buscou, propositalmente, diferenciar a jornada de trabalho em cada uma das situações, resta ainda uma dúvida a ser enfrentada: como se daria a jornada de trabalho dos advogados empregados de quem não for empresa nem escritório de advocacia? Seria o caso da prestação de serviços jurídicas por meio de vínculo emprego realizada a Sindicatos, associações, cooperativas e afins – vez que esses entes também não podem ser enquadrados como empresas, mas que também podem ter advogados em seu quadro de empregados contratados.

Nesse particular, parece-nos razoável equiparar o termo “empresa” aos demais tipos de empregador que não os “escritórios de advocacia”, intencionalmente excluídos do dispositivo legal, fazendo com que as alterações oriundas da nova legislação também fossem aplicadas nos casos envolvendo esses outros tipos de empregadores. Isso porque, a especificidade da lei atinge apenas os escritórios e não outros tipos de pessoas jurídicas. De toda forma, se nesse caso pudesse ser apontada – como de fato parece-nos ser possível – questionamento a respeito da intenção do legislador, inafastável para o particular o princípio da interpretação da norma mais favorável ao empregado.

Diante de todas essas questões apresentadas, pode-se dizer, então, que passa a valer em nosso ordenamento jurídico uma nova e diferente jornada de trabalho dos advogados, sendo ela de 8 horas diárias e 44 horas semanais – independentemente de exclusividade – em escritórios de advocacia e limitada a 40 horas semanais quando em empresas e ou outros empregadores que não foram expressamente incluídos e mencionados pelo legislador, mas que devem ser contemplados pela interpretação do novo artigo 20º, do Estatuto da Advocacia.