A Mesa do Senado promulgou no dia 14 de dezembro o Decreto Legislativo 179/2018, que atualiza três documentos usados para orientar as atividades de Defesa no Brasil. O texto altera a Política Nacional de Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco de Defesa Nacional. A norma foi publicada no dia 17, no Diário Oficial da União.
O consultor legislativo do Senado João Paulo Botelho, que atua nas áreas de Defesa e Relações Internacionais, explica que os documentos existem “para dar uma satisfação à sociedade” sobre as atribuições e os desafios das Forças Armadas.
“Eles são uma carta de intenções. Uma tentativa de chamar a atenção dos civis para a organização da Defesa, uma área ainda pouco conhecida da população. O objetivo é mostrar para a sociedade que a Defesa existe e que as pessoas têm que se preocupar com isso, por menos que a gente se envolva em guerras”, afirma Botelho.
A atualização dos três documentos foi encaminhada ao Congresso em março de 2017 pelo presidente Michel Temer, por meio da mensagem (MCN) 2/2017. O texto foi aprovado em outubro daquele ano pela Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) e deu origem ao projeto de decreto legislativo (PDS) 137/2018. A matéria seguiu para os Plenários da Câmara e, depois, do Senado, que concluiu a votação no dia 13 de dezembro.
Veja os principais pontos dos documentos promulgados.
Política Nacional de Defesa
Lançada originalmente em 1996, a Política Nacional de Defesa (PND) foi revisada em 2005 e 2012 e agora recebe a quarta versão. Uma novidade em relação à publicação anterior é a “concepção política” de Defesa. Segundo o documento, “a paz e a estabilidade nas relações internacionais” dependem da diplomacia “para a conjugação dos interesses conflitantes dos países”.
O texto recomenda que o Brasil adote 28 posicionamentos políticos na área de Defesa. O primeiro deles é a solução pacífica das controvérsias. “O uso da força somente será concretizado quando as possibilidades de negociação se apresentem inviáveis”. Outras orientações indicam que o país deve apoiar o multilateralismo, participar de organismos internacionais e incentivar a integração da América do Sul.
Os posicionamentos sugeridos pela PND contrastam com declarações de integrantes da equipe do presidente eleito Jair Bolsonaro. O futuro ministro da Fazenda, Paulo Guedes, afirmou em outubro que o Mercosul “não é prioridade” do próximo governo. O diplomata Ernesto Araújo, indicado para ser o futuro ministro das Relações Exteriores, criticou o que classifica de “ideologia globalista” e defende o “nacionalismo ocidental”. O consultor João Paulo Botelho minimiza essas declarações.
“O futuro governo se alinha muito ideologicamente ao presidente [dos Estados Unidos] Donald Trump. Num primeiro momento houve aquelas posturas um tanto radicais. Mas na hora ‘H’ eles não vão assumir essas posições tão isolacionistas. Se há um tratado internacional com 150 países, por que fazer parte da meia dúzia que fica de fora? Na prática, esses documentos vão prevalecer contra ideias de uma, duas ou três pessoas”, argumenta Botelho.
Em uma análise sobre o “ambiente nacional”, a PND destaca que o Brasil carece “de maiores investimentos em ciência, tecnologia e inovação e em qualificação do capital humano”. O texto alerta ainda que “os estrangulamentos de infraestrutura existentes poderão retardar o efetivo desenvolvimento do país”.
De acordo com o documento, a falta de regularidade nas aquisições de produtos de defesa e na alocação de recursos orçamentários “tem desestimulado os investimentos” por parte da indústria nacional. “O ritmo do desenvolvimento tecnológico brasileiro não permite vislumbrar a eliminação da dependência externa em áreas de fundamental importância nos próximos vinte anos”.
A PND recomenda que o setor de Defesa dê “maior atenção” à Amazônia e ao Atlântico Sul, onde se concentram as reservas do pré-sal. “A ‘Amazônia Azul’ [é um] ecossistema de área comparável à Amazônia brasileira e de vital relevância para o país, na medida em que incorpora elevado potencial de recursos vivos e não vivos, entre estes, as maiores reservas de petróleo e gás do Brasil”. Amazônia Azul é o nome dado ao mar territorial brasileiro, contíguo ao litoral nacional, no Oceano Atlântico.
O texto define ainda oito objetivos nacionais na área de defesa. Eles servem para direcionar a formulação da Estratégia Nacional de Defesa, o segundo documento atualizado pelo decreto legislativo.
Estratégia Nacional de Defesa
A Estratégia Nacional de Defesa (END) foi lançada em 2008 e atualizada pela primeira vez em 2012. A terceira versão do documento define ações que devem ser adotadas para que o Brasil alcance os oito objetivos inscritos na PND. As medidas valem para todas as instâncias dos Três Poderes, assim como para setores não-governamentais.
De acordo com o texto, a Marinha deve dispor de meios capazes de detectar, identificar e neutralizar “ações que representem ameaça nas águas jurisdicionais brasileiras”. A END cita como exemplos de “atos ilícitos no mar” o tráfico de pessoas e drogas, o contrabando, a pesca ilegal e os crimes ambientais.
Segundo o documento, duas áreas do litoral merecem “atenção especial” do Poder Naval: uma faixa entre Santos (SP) e Vitória (ES) e a foz do rio Amazonas. O texto recomenda que a Marinha instale uma nova base de submarinos em Itaguaí (RJ) e um complexo naval de uso múltiplo nas proximidades do delta do Amazonas.
O Exército deve “neutralizar concentrações de forças hostis” junto à fronteira terrestre e contribuir para a defesa do litoral e do espaço aéreo. De acordo com a END, a tropa deve atuar apenas “de forma episódica e pontual” em operações de garantia da lei e da ordem, além de colaborar com órgãos de segurança pública nas ações contra crimes transnacionais na faixa de fronteira.
A Força Aérea Brasileira tem como missão manter a soberania do espaço aéreo. Para isso, deve buscar o domínio científico-tecnológico e conquistar a autossuficiência em projetos para eliminar a dependência externa.
O documento lista ainda três setores estratégicos que precisam ser fortalecidos no país: nuclear, cibernético e espacial. O desenvolvimento do primeiro fica a cargo da Marinha. Ela deve concluir a nacionalização e o desenvolvimento em escala industrial do ciclo do combustível nuclear, aprimorar as tecnologias para a construção de termelétricas nucleares e aumentar o uso da energia nuclear em atividades pacíficas.
O Exército deve cuidar do setor cibernético. A END sugere a atuação colaborativa entre o setor de defesa, a comunidade acadêmica e a indústria nacional. Cabe à Força Aérea desenvolver o setor espacial. As prioridades são: lançadores de satélites para comunicação, observação da terra, vigilância, meteorologia e navegação, além de satélites para uso governamental.
O consultor João Paulo Botelho destaca a importância dos três setores estratégicos. Mas alerta que o Brasil precisa lidar com um “problema antigo”: a falta de recursos.
“Sempre se falou nesses três setores. Mas, desde meados de 2000, eles já enfrentam restrições orçamentárias e contingenciamento. Ainda assim, as Forças Armadas preferem dilatar prazos do que interromper projetos. Elas não vão desistir desses três setores por causa de uma crise. Preferem ter um pouquinho do que não ter nada. O que a gente poderia criticar é que o Ministério da Defesa está abrindo demais o leque de prioridades na área de projetos estratégicos. Se tudo é prioridade, nada é importante”, avalia Botelho.
Livro Branco de Defesa Nacional
O último documento atualizado pelo decreto legislativo é o Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN). O texto é dividido em seis capítulos, que sofreram poucas mudanças em relação ao texto original, de 2012. O LBDN trata dos seguintes temas: Estado Brasileiro e Defesa; Ambiente Estratégico do Século 21; Defesa e Instrumento Militar; Defesa e Sociedade; Transformação da Defesa; e Economia da Defesa.
As principais novidades estão no capítulo sobre o Ambiente Estratégico do Século 21. O documento destaca “uma clara possibilidade de cooperação no campo da Defesa” entre os países da América do Sul e sugere o fortalecimento da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e do Conselho de Defesa Sul-Americano. “Devem ser vistos como possíveis instrumentos para o desenvolvimento de uma mentalidade de ‘comunidade de segurança regional’”.
O LBDN defende ainda alterações no atual Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), “que ainda reflete a realidade geopolítica do pós-Segunda Guerra”. Desde 1945, a estrutura foi alterada apenas uma vez: em 1965, os assentos não-permanentes saltaram de seis para dez. Mas África, América Latina e Caribe continuam sem representantes entre os membros permanentes, que têm poder de veto, mesmo quando minoritários. “Apenas uma reforma estrutural contribuirá para que as decisões do órgão, que afetam toda a comunidade internacional, sejam tomadas de forma mais representativa, transparente, legítima e eficaz”, destaca o Livro Branco.
Outro capítulo que merece destaque trata da Economia da Defesa. De acordo com o documento, um sistema eficiente requer “investimentos de grande vulto e de longo prazo” para a aquisição de submarinos, blindados e aeronaves. “Esses equipamentos têm um determinado tempo de vida útil, considerando-se degradações naturais e avanços tecnológicos. Precisam ser renovados periodicamente e, de preferência, em datas pré-programadas”.
O LBDN traz também informações sobre os gastos do governo brasileiro no setor. Em 2015, o Ministério da Defesa alocou 46,5% dos recursos para o pagamento de encargos sociais. Gestão e manutenção consumiram 35,9%. Apenas 10,5% foram para investimento, reaparelhamento e adestramento das Forças Armadas.
O documento oferece ainda comparações com despesas de outros países, a partir de dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa de Paz Internacional de Estocolmo, na Suécia. O Brasil está na 11ª posição no ranking, com US$ 31,95 bilhões. O primeiro da lista são os Estados Unidos, com US$ 595,47 bilhões – 18,6 vezes mais.
Ainda considerando os onze países que mais gastaram com Defesa em 2015, o Brasil é a nona nação com maior proporção de despesas em relação ao Produto Interno Bruto (PIB): 1,4%. Quem mais aloca recursos para o setor como proporção de sua economia é a Arábia Saudita, com 13,7%.
“O Brasil queria alcançar 2% do PIB com defesa. A gente não tem isso, mas o problema também é a qualidade do gasto. Não adianta gastar muito com pessoas que não estão trabalhando na área fim. A tropa tem que realizar campo, tem que enfrentar a situação real. Não adianta ter Forças Armadas em que o militar só faz educação física e documento da burocracia interna. Ele não pode ficar fazendo apenas guerra de papel. Tem que conhecer o país”, afirma o consultor João Paulo Botelho.