Greve de fome dos presos

Em agosto de 2012, mais de cem presos espanhóis integrantes do ETA, grupo separatista Basco, iniciou uma greve de fome em razão da negativa do pedido de livramento condicional de um dos integrantes do movimento, Iosu Uribetxeberría, condenado a trinta e dois anos de prisão em razão do sequestro de um funcionário penitenciário acometido de câncer em estágio avançado. Essa greve, iniciada pelo próprio Iosu Uribetxeberría, foi seguida por vários presos bascos não apenas na Espanha, mas também em outros países europeus, como a França, tendo esse fato repercutido em todo o mundo. Após duas semanas em greve de fome, a justiça espanhola concedeu livramento condicional ao preso que, segundo relatórios médicos, não teria mais de doze meses de vida.

Os protestos realizados mediante greve de fome não são exclusivos da realidade europeia. Os noticiários nacionais ou uma pequena pesquisa perfunctória em ferramentas virtuais de busca demonstram que, muito frequentemente, reeducandos brasileiros protestam por meio desse instrumento. Em verdade, protestos dessa natureza remontam aos tempos romanos e, no Brasil, ampliaram-se sobremaneira no período militar.

Nessas circunstâncias, impõe-se a indagação de como o Estado deve agir quando um cidadão, acautelado e tutelado pelo Estado, colocar em risco, deliberadamente, valendo-se da liberdade constitucional de protestar e se expressar, sua própria vida. De maneira mais direta: é possível ao Estado restringir a liberdade de expressão e a liberdade de manifestação de pensamento – e de protesto –, obrigando o preso a se alimentar, seja por via oral, seja por internação compulsória, para submetê-lo a alimentação intravenosa?

A questão envolve, como nos casos anteriormente apresentados, em primeiro plano, a indagação de se é dever do Estado tutelar liberdades ou direitos mesmo contra a vontade do titular. Assim sendo, é preciso sondar se há alguma chave autorizativa para que o Estado eleja, em nome do titular das liberdades e direitos, uma que lhe seja considerada mais cara, tutelando-a em detrimento de outra, claramente eleita pelo titular dessas liberdades ou direitos.

Enormemente debatida no Brasil, marcadamente pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), a questão, em 2005, foi resolvida pela edição da Resolução n. 04, que considerou não apenas aspectos puramente legais, como, igualmente, questões ligadas à ética médica.

O atendimento a pessoas em greve de fome, como decidiu a Resolução, deve considerar que ninguém pode ser obrigado a se alimentar a menos que haja uma lei que assim imponha, como igualmente considera que o Direito Penal Brasileiro enfrenta a questão de forma aparentemente antagônica. Se, de um lado, é crime deixar de prestar assistência a alguém em grave e iminente perigo , igualmente é crime, previsto em mesmo diploma, constranger alguém com reduzida capacidade de resistência a fazer o que a lei não manda . Todavia, esse último dispositivo excepciona o crime – exclui a ilicitude – se o médico intervém, mesmo sem o consentimento do paciente, em caso de iminente perigo de vida.

De igual forma, o Código de Ética Médica  veda qualquer procedimento médico sem o devido consentimento prévio do paciente ou de responsável legal, salvo em iminente perigo de vida, chegando a afirmar, expressamente, que alimentar compulsoriamente uma pessoa em greve de fome considerada capaz, física e mentalmente, de fazer juízo perfeito das possíveis consequências de seus atos, é vedado ao médico .

A Resolução, ao criar procedimentos estatais para o enfrentamento de greves de fome de detentos e reeducandos, determina que essa manifestação de expressão precisa ser respeitada, devendo a equipe médica esclarecer as consequências de tal ato, não podendo interná-lo ou alimentá-lo compulsoriamente. Todas as intervenções devem ser realizadas com o consentimento do preso, salvo nos casos de perigo iminente de morte, onde a decisão médica será soberana, a fim de preservar a vida.

Nas diretrizes para atendimento de grevista de fome no Sistema Penitenciário Brasileiro, a autonomia do preso deverá ser respeitada até que este não seja mais considerado, em razão das consequências biológicas do jejum, apto a exprimir sua vontade e corra risco iminente de morte.
Isso é relevante indicativo do Estado Brasileiro da manutenção da autonomia individual como componente da dignidade da pessoa humana.

Que as muitas outras decisões estatais sejam assim pautadas.