Imposições estatais aos condutores de veículos automotores

A imposição de utilização de cintos de segurança para motoristas e passageiros de veículos automotores no Brasil não é propriamente novidade, pois antes da entrada em vigor do Código de Trânsito Brasileiro muitas unidades federativas impunham aos condutores, em seus estados, sua utilização compulsória, como ocorreu no Rio Grande do Sul com a Lei n. 10.521/1995. Nesse estado não apenas foi criada essa obrigação para condutores e passageiros de veículos automotores que trafegassem pelo Rio Grande do Sul, como também foi imposto que crianças com menos de dez anos de idade fossem transportadas exclusivamente no bando de trás dos veículos.

Para além da discussão material travada – da possibilidade ou não de o Estado impor restrições às liberdades de seus cidadãos com o fito de garantir direitos titularizados por esses mesmos cidadãos sobre os quais incidiriam as restrições – havia um debate instalado no campo formal.
Isso porque a Lei 5.108/1966, o antigo Código Nacional de Trânsito, não regulou a matéria, que acabou sendo tratada nacionalmente pela Resolução 720, do Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN.

Discutia-se, naquela quadra, se uma resolução de um Conselho poderia impor limitações às liberdades dos usuários de veículos automotores. A questão foi sanada somente com a edição do Código de Trânsito Brasileiro e com a ADI 2.960, do Supremo Tribunal Federal.

Com o Código de Trânsito Brasileiro, de 1997, a obrigatoriedade do uso de cintos de segurança para todos os usuários de veículos automotores acabou sendo pacificada do ponto de vista formal . Nada obstante, boa parte da população ainda se indignava com essa “violação da liberdade”, que a impedia de conduzir seu veículo “livremente”, e muitos forjavam a utilização do cinto valendo-se de mecanismos que o travavam. Diz-se, inclusive, anedoticamente, que houve incremento na venda das camisetas do Vasco da Gama, pois sua faixa diagonal confundia a fiscalização de trânsito.

Portanto, assim como ocorreu com a vacinação obrigatória (tratada em artigo anteriormente publicado nesta coluna), o cinto de segurança mandatório impôs àqueles que pretendem circular em veículos automotores uma condição até então não existente, com o fim declarado de prevenir danos à saúde e à vida dos próprios sujeitos sobre os quais recaiu a imposição.

Ainda sobre veículos automotores, no Brasil, também com o CTB, passou a ser obrigatória a utilização de capacetes para condutores de motocicletas. Essa imposição do Estado brasileiro não encontra similitude em outros países. Dos quarenta e oito estados americanos, por exemplo, apenas dezenove exigem o uso de capacete e, em muitos deles, a imposição incide apenas aos menores de dezoito anos.

Por mais que o Mapa da Violência no Trânsito, do Ministério da Saúde, transpareça o risco na utilização de motocicletas , a imposição – restrição da liberdade de trafegar de motocicleta sem utilização de capacete – tem como móvel principal a tutela, assim como acontece com o cinto de segurança, da saúde e da vida do usuário do veículo, o que traz uma ideia de tutela de alguns bens ou direitos mesmo contra a vontade do titular.

A imposição de utilização de cinto de segurança é questão que já frequentou o debate jurídico também na França. Em 28 de junho de 1973, o Primeiro Ministro Francês, por meio de um decreto, obrigou que todos os condutores de automóveis, bem como seus passageiros, utilizassem cinto de segurança, bem como que os condutores de motocicletas e ciclomotores usassem capacete.

Considerou-se como fundamento do decreto que, quando os condutores e passageiros de veículos não utilizam cintos de segurança, e os condutores e passageiros de motocicleta não usam capacetes, ficam mais vulneráveis às consequências de um acidente e, por mais que isso não gere perturbação direta da ordem pública, o Primeiro Ministro Francês à época, fundamentado na competência de poder geral de polícia, emitiu o decreto. Surgiu, então, o debate sobre se a polícia administrativa poderia ser manejada para proteger os automobilistas e os motociclistas contra eles mesmos.

O Conselho de Estado Francês respondeu positivamente à questão no julgamento Bouvet de la Maisonneuve , de 4 de junho de 1975, ao estabelecer que o decreto não excede o poder conferido à autoridade administrativa quando obriga os condutores a utilizarem o cinto de segurança e o capacete com o fim de reduzir as consequências dos acidentes.

Nesse sentido, surgem indagações referentes ao manejo do poder de polícia na espécie, não como maneira de se tutelar direitos dos próprios sujeitos das imposições, mas como forma de diminuir o impacto financeiro na seguridade social decorrente da consequência grave dos acidentes automobilísticos.

Todavia, o enfrentamento da questão tanto pelo Conselho de Estado como, posteriormente, pela Corte de Cassação , deixa claro que a proteção das pessoas contra elas mesmas constitui um novo componente da noção de ordem pública.

Esse entendimento acabou sendo consolidado nos Tribunais Administrativos, no Conselho de Estado e na Corte de Cassação em outras situações, tais como nos casos em que se admitiram toques de recolher para menores de idade em bairros considerados perigosos do ponto de vista da criminalidade, no abrigar forçado de moradores de rua em condições de frio extremo  e no julgamento referente à brincadeira de arremesso de anões.

No Brasil, as limitações, obrigações ou restrições impostas pelo Estado aos seus cidadãos (em tese) em benefício deles próprios é também nova faceta do poder de polícia ou não passa de medida estatal com o fim – ainda que não declarado – de diminuir os gastos com saúde e previdência?

1 – Art. 65. É obrigatório o uso do cinto de segurança para condutor e passageiros em todas as vias do território nacional, salvo em situações regulamentadas pelo CONTRAN.      

2 – De 1996 a 2001 houve um incremento de 491% no número de motocicletas circulando em vias públicas brasileiras, conquanto o percentual de vítimas fatais por acidentes em motocicletas, para o mesmo período, cresceu 932%.
 
3 –  CE 4 de junho de 1975, Bouvet de la Maisonneuve, DA 1975, comm. n. 66. Confirmé par CE 17 décembre 1975.

4 – “quén faisant obligation, afin de réduire les consequences des accidents de la route, de porter une ceinture de sécurité attachée, le décret ataque n’a pas excédé les pouvoirs conférés à l’autorité réglementaire.”