Remoção de habitantes de locais de risco

Em 2010, chuvas intensas castigaram a cidade do Rio de Janeiro. Esse fenômeno, juntamente com a maré alta e a completa falta de sistema de captação e escoamento de água de chuva, principalmente nas favelas e encostas de morros, ocasionaram a morte de mais de trezentas pessoas.

O jornal “O Globo” destacou, no dia 9 de abril de 2010:

A tragédia de 2010 tem de ser o marco zero de uma política séria de remoções de moradores de áreas de risco e de pequenas favelas. Não há mais por que manter o preconceito contra a remoção, quando é possível fazê-las sem os erros do passado. A ficar como está, a próxima catástrofe será maior que a atual, por sua vez, mais extensa que as da década de 60, e assim, sucessivamente. O drama se agravará ao ritmo da favelização.

Aproveitando-se daquele contexto, a Prefeitura do Rio de Janeiro, em 7 de abril de 2010, por meio do decreto n. 32.081, declarou que a cidade estava em emergência:

O alto índice de precipitação pluviométrica acumulado em 24h (304,6 mm no Jardim Botânico) resultou no incremento das precipitações hídricas sobre a cidade do Rio de Janeiro (chuvas fortes), ocasionando danos e prejuízos vultosos em desfavor da população carioca. Áreas do Município sofreram com escorregamentos de terra, deslizamentos de encostas, rolamento de pedras, desabamentos de imóveis com múltiplas vítimas, inundações, interdição de vias especiais, colapso nos serviços de abastecimento de energia elétrica e de água, colapso no sistema de transportes e de telefonia, bem como fluxo desordenado do trânsito.

Como consequência desse desastre, resultaram danos humanos, materiais e ambientais, assim como prejuízos econômicos e sociais, conforme avaliação preliminar de danos elaborada pelos órgãos municipais competentes.

Em acordo com a Resolução nº 03, do Conselho Nacional de Defesa Civil – CONDEC, a intensidade deste desastre foi dimensionada como de Nível II, com condições significativas de agravamento.

Concorrem como critérios agravantes da situação de anormalidade: o crescimento desordenado da cidade nesta última década, permitindo a construção de numerosas edificações em áreas de risco geotécnico e de inundações; a existência de 1.000.000 (hum milhão) de pessoas afetadas, a vulnerabilidade do sistema viário, o risco de colapso nos sistemas de abastecimento e o risco iminente de escorregamentos e deslizamentos de encostas.

A continuação das chuvas, somando-se ao levantamento realizado pela Prefeitura indicando que mais de um milhão de pessoas residiam em locais em risco de desabamento, fez com que fosse promulgado, em 13 de abril daquele ano, por decreto executivo, o programa “Morar Seguro”, oferecendo subvenções aos habitantes dos locais apontados pela defesa civil como de risco iminente.

A baixa adesão imediata ao programa redundou em uma autorização concedida pela Prefeitura para que a Secretaria de Saúde e a Defesa Civil do Estado removessem compulsoriamente as pessoas residentes nas áreas classificadas como de alto risco[1], tendo sido suas casas demolidas pela Prefeitura.

Em 2013, o mesmo quadro de altos índices pluviométricos, somado a ocupações irregulares, omissões do Poder Público e falta de infraestrutura urbana, desencadearam, agora em Belo Horizonte, a remoção compulsória de todos os habitantes do Conjunto Santa Maria. Sob o argumento de risco geológico de desabamento, a Prefeitura da cidade ajuizou uma ação judicial em que se pleiteava autorização para remoção daquelas famílias. Com liminar deferida, as famílias foram removidas e as residências demolidas.

Nessas ações, e são várias as ajuizadas em todo o país, ainda que o argumento seja o risco iminente à vida dos habitantes, juridicamente a questão é enfrentada por outro ponto de vista: todas essas áreas são, em verdade, áreas de preservação permanente, impassíveis de ocupação humana e, portanto, legitimadoras de uma remoção compulsória.

O que se tem, portanto, é uma abordagem equivocada da questão. Por mais que, aos olhos da imprensa, pode o Estado estar manejando seu poder extroverso para remover compulsoriamente famílias de suas residências, em verdade, está o Estado valendo-se de seu poder de polícia de ordenação do solo urbano e edificações.

A questão se sintetiza da seguinte forma: a ocupação de locais de risco sempre ocorre por omissão Estatal, o que redunda, em última análise, numa primeira ilegalidade cometida pelos ocupantes e em uma segunda ilegalidade omissiva da administração pública.

Não há interferência no âmbito de liberdade dos cidadãos, mas em controle de polícia manejado fora do tempo pela administração. Como não há direito adquirido a situações jurídicas decorrentes de condutas ilegais, não há que se falar em impossibilidade fiscalizatória do Estado, por mais que a omissão ou atuação tardia seja passível de controle.

[1]  Decreto municipal n. 32.081, de 7 de abril de 2010: “Art. 3º – Fica autorizada, nos termos dos incisos XI e XXV, do artigo 5º, da Constituição Federal, às autoridades administrativas e aos agentes de defesa civil, diretamente responsáveis pelas ações de resposta aos desastres, em caso de risco iminente, a adoção das seguintes medidas:I – penetrar nas casas, mesmo sem o consentimento do morador, para prestar socorro ou para determinar a pronta evacuação das mesmas; […]”. Decreto Estadual n. 42.046, de 13 de abril de 2010: “Art. 5o – Fica a Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil autorizada a realizar a interdição e a desocupação compulsória de imóveis situados nas áreas classificadas pela Comissão gestora do programa como vermelha”.

*Carlos Vinícius Alves Ribeiro, Promotor de Justiça, membro do CNMP, Professor de Direito Administrativo e Urbanístico, Mestre e Doutor em Direito do Estado pela USP.