Não seja contra ou a favor. Seja empático!

*Ana Lúcia Amorim Boaventura

De vítima a assassina. De criança a mal produto do feminismo. De inocente a conivente. Esse pesadelo foi proporcionado por parcela de nossa sociedade moralista a menina capixaba de apenas dez anos, vítima de estupro praticado pelo tio.

Quando um aborto legal assusta mais que quatro anos de violência sexual a uma criança, é porque está na hora de revermos questões importantes em nosso meio. O aborto é apenas um dos relevantes assuntos que permeiam o caso. Questões como estrutura familiar, educação sexual, atendimento médico humanizado às vítimas de violência sexual, saúde mental do reeducando, sistema penitenciário, progressão de regime de pena, ética e responsabilidade médicas nesses casos, devem ser discutidos, além da desinformação que geram muito preconceito.

Prova disso é que a maioria da população pensa que, para a mulher ter acesso ao direito ao aborto nesses casos, ela precisa de autorização judicial, fazer BO ou exame de corpo delito. Isso é falso! Uma coisa é o direito da mulher em abortar, outra é a investigação policial ou ação penal. Um não depende do outro. Ao procurar o serviço de saúde, a mulher deverá ser assistida por uma equipe multidisciplinar que irá garantir a ética e legalidade do procedimento.

Daí surge outro preconceito: de que a mulher facilmente pode mentir para ter acesso ao aborto legal. Inverdade! O procedimento é feito, basicamente, em cinco etapas, segundo a Portaria 1.508/2005 do Ministério da Saúde, que são: o preenchimento de termos com informações detalhadas do fato criminoso, parecer técnico do ginecologista que, além de fazer a anamnese, exame físico e ultrassom, irá averiguar se a idade gestacional é compatível com a data do estupro relatado pela mulher.

A mulher deve receber atenção de assistente social, psicólogo e enfermeiro que farão seus protocolos de atendimento que, juntamente com os médicos, irão concluir pela realização do aborto legal quando não há suspeita de alegação falsa de crime de estupro. A vítima preenche termos onde reconhece saber das complicações e riscos inerentes ao procedimento de aborto, e que, caso esteja mentindo sobre a existência do estupro, poderá responder por crime de falsidade ideológica e aborto criminoso.

Vê-se que, dentro do melhor cenário de atendimento, o caminho é longo e traumático, imaginem quando não se tem acesso a todos esses cuidados de modo adequado. A mulher, nesses casos, deve ser tratada como vítima, digna de respeito e atenção. Colocá-la como culpada por ter sido violada e julgá-la por percorrer o doloroso caminho do aborto legal é muita crueldade. A lei, infelizmente, não tem o poder de tornar um procedimento indolor a alma.

A lei tenta amenizar a situação de injustiça, tenta restaurar a paz individual e social. Seja através da aplicação da pena ao criminoso através de outros meios, como no caso, do aborto legal.  Esse é o caso da menina capixaba. Jamais essa criança será como outra que vive em um ambiente familiar saudável. Mas, o aborto e outros cuidados que deverão ser dados a ela, irão tentar colocá-la o mais próximo possível inserida em uma vida normal de uma criança de sua idade. Permitir que se tente trazer de volta a infância, a alegria e a paz. Esse é o nosso papel. Permita! Não julgue! Não seja contra ou favor. Apenas seja empático!

*Ana Lúcia Amorim Boaventura é advogada especialista em Direito Médico