Da (im)possibilidade de cumulação da prisão cautelar com medidas cautelares diversas da prisão

*Julyan Ramos da Fonseca e Kelvin Wallace

Nas lições de Cesare Beccaria: o sistema atual da jurisprudência criminal apresenta aos nossos espíritos a ideia da força e do poder, em vez da justiça, é que se atiram, na mesma masmorra, sem distinção alguma o inocente suspeito e o criminoso convicto, é que a prisão, entre nós, é antes de tudo um suplício e não um meio de deter um acusado[1]. Dentro dessa passagem do jurista italiano que lutou tanto contra todas as mazelas de sua época, mal sabia que em pleno século XXI estaríamos diante de prisões deploráveis.

Ocorre que surpreendentemente, o Superior Tribunal de Justiça deferiu na Cautelar Inominada Criminal Nº 35 – DF (2020/0204204-1), a cumulação de prisão cautelar (prisão preventiva), com medidas cautelares diversas da prisão previstas no art. 319 do Código de Processo Penal.

No caso em apreço, o Tribunal da Cidadania, ao apreciar o requerimento de prisão preventiva elaborado pela Procuradoria da República em face do Governador do Estado do Rio de Janeiro e de outros seis corréus, sinalizou a possibilidade de cumulação de medidas cautelares de natureza pessoal (prisão preventiva) com medidas cautelares diversas da prisão no mesmo contexto fático.

Concluindo de forma trágica ao caso, que um preso preventivo tenha contra si, também, a decretação de medidas cautelares diversas da prisão, causando uma verdadeira metamorfose ambulante entre os artigos 312 e 319 do Código de Processo Penal e afrontando toda a sistemática processual penal.

Vale lembrar que no ordenamento processual penal pátrio, mesmo diante a ausência de um processo cautelar autônomo, temos a presença de medidas cautelares que visam assegurar uma escorreita apuração de um fato contrário a norma, futura aplicação da lei e, também, futura indenização ou ressarcimento dos possíveis danos causados pelo evento criminoso.

Desse modo, as medidas cautelares traduzem-se em “verdadeiros mecanismos de contorno do efeito deletério do tempo sobre o processo”, resguardando assim a verdadeira pretensão da demanda [2].

Nesse diapasão, constatada a presença da materialidade e de indícios de autoria (fumus comissi delicti) e a demonstração concreta de que liberdade do acusado/investigado colocaria em risco o processo, a segurança social ou a investigação (fumus comissi delicti), deverá o judiciário lançar mão das medidas cautelares, observando sempre o princípio da proporcionalidade.

Mas sob o reinado calmo das leis, para conferir suporte à sua decisão, o douto STJ socorreu-se ao artigo 282, §1º do CPP, que permite a aplicação de medidas cautelares de forma isolada ou cumulativamente, apontando no decisum  que, mesmo não sendo usual tal cumulação, é permitida por lei, o que discordamos com todas as forças, assim como ousamos dizer, que Cesare Beccaria também o faria.

Com as devidas vênias, a vontade do legislador ao permitir tal cumulatividade está intimamente ligada ao direito do instituto libertador colacionado com as medidas cautelares diversas da prisão previstas no artigo 319 do CPP, e não a cumulação dessas com as medidas cautelares de natureza pessoal (prisão preventiva ou temporária).

Ainda que seja forçoso, numa interpretação teleológica (aquela que busca o verdadeiro sentido da norma), ou extensiva (aquela que amplia o sentido da norma ou atribui outro significado a mesma), não haveria suporte legal para legitimar tal cumulação, traduzindo-se em verdadeira inovação jurídica, para não dizer barbaridade jurídica.

A propósito, soa incoerente decretar a prisão preventiva de um investigado ou acusado e, ao mesmo tempo, proibi-lo de comunicar-se com os outros corréus (como no caso em análise). A restrição máxima da liberdade de locomoção do agente já demonstra a ineficiência e insuficiência de todas as outras medidas cautelares diversas da prisão previstas no art. 319 do CPP.

Tanto é verdade, que o artigo 282, §6º do Código de Processo Penal, incluído pelo famigerado pacote anticrime (Lei 13.964/19), atesta que a prisão preventiva somente poderá ser decretada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar diversa prevista no art. 319 do CPP, devendo o magistrado, obrigatoriamente, fundamentar a impossibilidade de aplicação de restrição menos gravosa ao agente.

Na doutrina, as lições de Renato Brasileiro de Lima são elucidativas ao caso, narrando que “na hipótese de prisão cautelar (ou internação provisória), não será possível a cumulação com outra medida cautelar, uma vez que já se estará impondo ao acusado o grau máximo de restrição cautelar, privando-o de sua liberdade de locomoção”[3].

No âmbito jurisprudencial, não há amparo para a decisão adotada pelo Tribunal da Cidadania, sendo totalmente coerente com o sentimento de horror que afronta todos os esforços da razão, inovando no cenário processual penal brasileiro.

Portanto, como bem asseverou o jurista italiano Cesare Beccaria nossas leis retrógradas estão muito distantes das luzes dos povos, o ínclito  Superior Tribunal de Justiça ao nosso sentir abandona friamente a lei para ir gozar em paz as doçuras e os prazeres da existência, e talvez vangloriar-se, com íntima complacência, pela autoridade que acaba de exercer.

Restando dizer o óbvio, que diante dos argumentos lançados e por ausência de guarida doutrinária, jurisprudencial e legislativa, é cristalina a impossibilidade de cumulação de medidas cautelares de natureza pessoal de restrição máxima (prisão preventiva ou temporária) com as medidas cautelares diversas da prisão.

*Julyan Ramos da Fonseca é advogado criminalista. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Presidente da Comissão de Prerrogativas da 11ª Subseção da OAB-RJ.

*Kelvin Wallace é advogado criminalista, professor universitário. Especialista em Direito Penal e Processo Penal e Docência Universitária. Secretário Adjunto da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Abracrim-GO.

REFERÊNCIAS:

[1] BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das penas. Trad.: Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2014.

[2] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

[3] DE LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 3. ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2015.

.