Garantismo penal x Garantismo de ocasião

*Fernanda Santos

No atual estado de (pré/pós/continuação) pandemia e as diversas expressões normativas buscando a proteção das referidas garantias constitucionais apregoadas pelo instituto do Processo Penal Constitucional e do Processo Penal Democrático, ainda que de forma excepcional, se fazem mister observar as suas balizas. Evitando assim um garantismo de ocasião, o que fere as regras do jogo, tendo em vista que o Direito Penal e Direito Processual Penal Brasileiro, a Execução Penal e a Legislação Penal Extravagante, estão assim como o Código de Processo Civil de 1973, se convertendo em uma verdadeira colcha de retalhos legislativa, o que eclodirá em uma reforma legislativa e processual. E caso a mesma seja feita em toque de caixa, usurpará garantias constitucionais, e trará diversos inconvenientes mesmo após mais de 80 (oitenta) anos de sua implementação com base em estudos feitos pelo então Ministro da Justiça Francisco Campos, mais conhecido como “Chico Ciência”, entre 1940 e 1941, ao implementar em conjunto com sua equipe de juristas, a legislação penal e processual penal, como hoje se vê livremente inspirada no Código Rocco, da Itália de Benito Mussolini.

E o resguardo das garantias constitucionais, penais e processuais penais, visando conter possíveis abusos legislativos, em Processo Penal é algo de suma importância. O doutrinador penalista Luigi Ferrajoli afirmou que a função primordial do modelo garantista é a proteção dos direitos fundamentais do cidadão, buscando evitar excessos e ilegalidades nos processos, igualdade e respeito à dignidade humana. A teoria garantista buscará humanizar o Processo Penal, considerando o acusado como um ator social detentor de direitos e garantias fundamentais. A teoria garantista de Luigi Ferrajoli traz dois princípios de extrema importância no que tange a análise da efetiva proteção dos direitos e garantias fundamentais e a exigibilidade do cumprimento dos deveres fundamentais: 1) o princípio da presunção de inocência; 2) o princípio da necessidade e da lesividade, o que se fundamenta neste pequeno esboço. E de acordo com Antônio Cláudio da Costa Machado:

Do principio da legalidade penal irradiam-se os contornos intangíveis da liberdade individual. Parte-se do pressuposto inarredável de que a liberdade é a regra, que convive com pequenas – ainda que numerosas – “ilhas” de proibição: somente são proibidas e apenadas aquelas determinadas condutas (ações ou omissões) previstas em lei. Além de estabelecer a necessidade de previsão legal das condutas proibidas, o princípio da legalidade somente autoriza o Estado a aplicar certas e determinadas penas, em exata consonância com o previsto em lei (COSTA MACHADO, 2017, p. 25).

O princípio da presunção da inocência se resumirá na premissa de que ninguém será submetido a um processo judicial sem uma prova concreta, sem a convicção fundamentada. Assim, em sentido lato sensu não há culpa sem juízo e em sentido estrito, não há juízo sem que a acusação se sujeite à prova e à refutação da mesma e de sua cadeia produtiva, e então há a presunção de inocência do réu até prova contrária exposta claramente nos feitos judiciais, e prontamente decretada pela sentença condenatória definitiva do condenado. Ainda sobre o tema, afirma se que esse princípio fundamental que representa a escolha garantista a favor da preservação dos inocentes, mesmo que custe a impunidade de algum culpado. O Direito Penal, o Direito Processual Penal, o Direito Constitucional, e o Direito Processual Penal Constitucional têm como função primordial a defesa dos bens jurídicos elencados pela sociedade de atos lesivos, ou seja, aqueles que atingem terceiros. Portanto, se um terceiro é prejudicado com este efeito lesivo decorrente de uma ação reprovável, recorre-se ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal para a pronta solução do impasse neste liame. E o doutrinador penalista Guilherme de Souza Nucci, entende que:

Os direitos fundamentais, pois, constituem-se de direitos individuais, coletivos, sociais e políticos, exaltados na Constituição, e são os indispensáveis ao pleno desenvolvimento do homem e do cidadão, especialmente frente ao Estado, que tem por obrigação não somente respeitá-los, mas também assegurá-los e protegê-los. As garantias fundamentais são os instrumentos constitucionais colocados à disposição dos indivíduos e das instituições para fazer valer os direitos fundamentais. (NUCCI, 2016. p. 67).

Em procedimentos corriqueiros, a proximidade do magistrado, como presidente do feito, e não como Pop Star, usando de ativismo judicial exacerbado, e dos abusos em sua função judicante, para com o personagem que buscará o garantismo penal sem fazer uso do garantismo de ocasião, ao abraçar de forma ampla o dever de julgar, fazendo-se tais balizas diante do mesmo apresentar ao julgador para, que o acusado exercendo ou não o seu direito de ser interrogado (posto que a todos é garantido o direito ao silêncio sem prejuízo de sua defesa), influenciar a formação da convicção do presidente do feito, em outras linhas, o magistrado que irá traçar tecnicamente o destino da pessoa acusada de algum crime. Ou seja, além da participação na produção de provas (via audiência de instrução), há o interrogatório na presença do magistrado e demais entes judiciais, garantindo assim a todos os protagonistas do Processo Penal Democrático e do Processo Penal Constitucional, a busca pelos fatos em si.

Neste contexto acima, observa-se que em decorrência do momento de (pré/pós/continuação) pandemia enfrentado, o Poder Judiciário, seja através de normativas internas dos Tribunais Estaduais e dos Tribunais Superiores, ou estipuladas pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ, não virou seus olhos às balizas de garantias definidas por Luigi Ferrajoli, e tantos outros doutrinadores penalistas e processualistas. A premissa da presunção da inocência e da defesa de bens jurídicos, tanto da sociedade em geral, quanto do réu em um processo criminal, não poderão ser descuidados por razões exteriores àquelas valoradas no mundo jurídico.

As limitações impostas pela (pré/pós/continuação) pandemia acabaram por traçar um cenário que ainda não tinha sido enfrentado no mundo contemporâneo, e não seria diferente no âmbito do Poder Judiciário. As audiências de instrução e julgamento vêm sendo realizadas em regra, pelo meio virtual/híbrido/presencial, e de outro modo as mesmas não poderiam ocorrer, pois o isolamento social de um lado, e a necessidade de continuidade dos processos criminais, especialmente aqueles envolvendo réus presos (em que é evidente a primazia de destaque em razão da discussão sobre a liberdade do cidadão), acabam por não deixar outra opção ao Poder Judiciário, que a pronta continuidade destes processos, mas atendendo aos cuidados indicados pelas organizações de saúde e das Corregedorias dos Tribunais, sejam estes Estaduais ou Superiores, ou na Justiça Especializada (Justiça Federal e Justiça do Trabalho), além de outros vieses inerentes ao tema. O doutrinador e processualista penalista Aury Lopes Jr., ressalta desta forma que:

A democracia, enquanto sistema político-cultural que valoriza o indivíduo frente ao Estado, manifesta-se em todas as esferas da relação Estado-indivíduo. Inegavelmente, leva a uma democratização do processo penal, refletindo essa valorização do indivíduo no fortalecimento do sujeito passivo do processo penal. Pode-se afirmar, com toda ênfase, que o princípio que primeiro impera no processo penal é o da proteção dos inocentes (débil), ou seja, o processo penal como direito protetor dos inocentes (e todos a ele submetidos o são, pois só perdem esse status após a sentença condenatória transitar em julgado), pois esse é o dever que emerge da presunção constitucional de inocência prevista no art. 5º, LVII, da Constituição. (LOPES JR., 2017, p. 36).

Ocorre que, ao se fixar a análise do resguardo das balizas constitucionais, diante do garantismo penal em confronto com o garantismo de ocasião, e a necessidade de resposta célere para aquele acusado que aguarda o seu julgamento em um estabelecimento prisional (em regra de situação precária), tendo a sua liberdade posta em jogo, ou o acusado que espera em liberdade a pronta resolução da ação penal tramitada em seu desfavor, e o movimento dos órgãos do Poder Judiciário deverão buscar a efetividade do Processo Penal Democrático, e do Processo Penal Constitucional, ante uma situação extraordinária de (pré/pós/continuação) pandemia. E este panorama justificam as orientações e as recomendações de tais órgãos em consonância com a continuidade ou não do isolamento social amplamente sugerido pelos órgãos de saúde pública. O doutrinador penalista Aury Lopes Jr. em sua obra Direito Processual Penal, reporta a respeito dos possíveis prejuízos que podem vir a ocorrer, na instrução da ação penal sem o devido resguardo das garantias constitucionais:

Já advertimos do grave problema que constitui o atropelo das garantias fundamentais pelas equivocadas políticas de aceleração do tempo do direito. Agora, interessa-nos o difícil equilíbrio entre os dois extremos: de um lado, o processo demasiadamente expedito, em que se atropelam os direitos e garantias fundamentais, e, de outro, aquele que se arrasta, equiparando-se à negação da (tutela da) justiça e agravando todo o conjunto de penas processuais ínsitas ao processo penal (LOPES JR., 2016. p. 43).

De outro lado, é inevitável a discussão acerca da efetividade do garantismo penal em confronto contra o garantismo de ocasião, e o Direito Penal do Espetáculo, efetivado pelas audiências virtuais/híbridas/presenciais, e as limitações físicas, uma vez que não haverá o aspecto pessoal-presencial entre todos os protagonistas do Processo Penal. E conforme já mencionado acima, o momento vivido pelo Direito Penal e do Direito Processual Penal nacional é de extraordinariedade, e os mecanismos encontrados são aqueles possíveis e em consonância com as diretrizes de saúde e das Corregedorias dos Tribunais. Porém, a possibilidade e o direito de influenciar a atuação do julgador, pela defesa e pelo defendido, de maneira mais direta e pessoal acabará sofrendo restrições de alto custo para direitos fundamentais (liberdade, devido processo legal, ampla defesa), o que ensejarão estudos, debates e formação de convicções sobre tais ponderações entre preceitos fundamentais, conforme já ressaltado nestas linhas.

E os valores e princípios do garantismo penal, em confronto com o garantismo de ocasião, tratados aqui são de sensibilidade máxima, pois englobam bens caros e irrenunciáveis, como: a liberdade, o devido processo legal, a efetividade do processo, o contraditório e a ampla defesa, dentre outros que certamente permeiam a questão do garantismo penal em confronto com o garantismo de ocasião. E as soluções para tais embates, precisam ser buscadas diuturnamente pelos órgãos judiciários responsáveis pela tramitação dos feitos criminais, e com sucesso ante os limites impostos por uma crise sanitária, mas com a reflexão sobre os novos questionamentos tendo por base a garantia a um processo justo e o aprimoramento de procedimentos eficazes na seara criminal, em especial, tendem a surgir, e a reflexão guia-se pelo aprimoramento dos valores e garantias constitucionais via garantismo penal pronto confronto com o garantismo de ocasião.

*Fernanda Santos é bacharela em direito, especialista latu sensu em Direito do Consumidor pela Universidade Federal de Goiás – UFG, especialista latu sensu em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Rede Atame, especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Faculdade Legale, entrevistadora do DM Jurídico, foi entrevistadora do Arena Criminal WEB, pela Rádio MID, capacitada em práticas colaborativas pelo Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas – IBPC em 2018, capacitada em administração de conflitos e negociação pelo Centro Universitário Faveni em 2021, controller jurídico do escritório Abrahão Viana – Advogados Associados, E do Grupo Pitterson Maris Advogados Associados, parecerista em matéria cível, filiada na Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD – Núcleo Goiás, e da Associação Vida e Justiça – Associação Nacional em Apoio e Defesa dos Direitos das vítimas da COVID-19 – Núcleo Goiás, Vice presidente da Rede de Ação e Reação Internacional – RARI Núcleo Goiás (2021/2023), foi articulista do jornal Perspectiva Lusófona em Angola (2010/2012), articulista do jornal Diário da Manhã (2009/2019), com publicações veiculadas no site Opinião Jurídica (2008/2011) e no site Rota Jurídica em Goiânia-GO (2014/2017), e pela Revista Consulex (2014/2016), e com artigos publicados pela Revista Conceito Jurídico, e Prática Forense pela Editora Zakarewicz (2019). Foi membro efetivo da Comissão da Advocacia Jovem – CAJ, da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Goiás – OAB/GO – Gestão 2013/2015.

REFERÊNCIAS:

COSTA MACHADO. Antônio Cláudio. ZAINAGHI. Domingos Sávio. Código Penal interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. 7. ed. Barueri: Manole, 2017.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

______. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 13. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2016.