A laicidade do Estado e a presença de crucifixos em espaços públicos

*Lorraine Vieira Nascimento

O Supremo Tribunal Federal decidirá, em um recurso extraordinário  com repercussão geral, se o uso de símbolos religiosos, como crucifixos e imagens, em prédios públicos, viola os princípios da laicidade do Estado, da liberdade de crença, da isonomia, da impessoalidade da Administração Pública e da imparcialidade do Poder Judiciário.

O recurso extraordinário foi autuado na Suprema Corte em janeiro deste ano pelo Ministério Público Federal contra acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que decidiu que “a presença de símbolos religiosos em prédios públicos não colide com a laicidade do Estado brasileiro. Trata-se de reafirmação da liberdade religiosa e do respeito a aspectos culturais da sociedade brasileira”.

A ação civil pública teve origem em uma representação feita ao Ministério Público Federal pelo presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, que noticiou que a ostentação de símbolo religioso, afixado em local de ampla visibilidade, dentro do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, teria gerado ofensa à sua liberdade de crença.

Convém lembrar que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já decidiu, em quatro procedimentos distintos, que a presença de símbolos religiosos nas dependências de qualquer órgão público do Poder Judiciário não viola, não agride, não discrimina ou, nem mesmo, perturba os direitos de terceiros.

O fato é que, não raras vezes surgem interpretações equivocadas do significado da laicidade estatal, que alegam que a simples presença de símbolos religiosos em espaços públicos agride os postulados constitucionais da laicidade do Estado e da liberdade de crença.

O Estado laico, contudo, não deve ser entendido como uma instituição antirreligiosa ou anticlerical. A liberdade de crença, a liberdade de culto e a tolerância religiosa foram aceitas graças ao Estado laico e não como oposição a ele.

A laicidade do Estado, conforme ensina Rafael Stanziona, “não significa a adoção pelo Estado de uma perspectiva ateísta ou refratária à expressão individual da religiosidade. Na verdade, o ateísmo, na sua negativa da existência de Deus, é também uma postura religiosa, que não pode ser privilegiada pelo Estado, em detrimento de qualquer outra cosmovisão”.

Nenhuma interpretação maximalista ou extrema do princípio constitucional da laicidade estatal poderá, no entanto, apagar os vestígios da religião na vida pública da sociedade brasileira. A exibição do crucifixo ou de qualquer outro símbolo cristão reflete a história de um país que, desde os primórdios, carrega consigo a cultura e a tradição católica.

A influência da religião na cultura brasileira não se limita à afixação de símbolos religiosos em prédios públicos, havendo numerosos logradouros, cidades, escolas, hospitais e outras instituições públicas e privadas que ostentam nomes de figuras religiosas, sem falar da expressão “Deus seja louvado” na cédula de real e dos diversos feriados de cunho religioso.

Essas referências não colidem com a laicidade do Estado, revelando-se, na verdade como manifestação da liberdade religiosa e principalmente como exteriorização dos elementos culturais e históricos da sociedade brasileira, que teve formação católica por influência da colonização portuguesa e da forte imigração italiana.

Por certo, a liberdade religiosa não inclui o direito de não ver certos símbolos, religiosos ou não, a menos que sejam objetivamente transmissores de uma mensagem de ódio ou de discriminação. A manutenção dos símbolos religiosos nos locais públicos traduz uma manifestação de proteção dos aspectos culturais da sociedade e de repulsa a posições laicistas.

Sob a ótica do autor da ação civil pública, essa suposta ofensa suportada pelas minorias religiosas ou não confessionais também se daria diante da visão da majestosa imagem do Cristo Redentor, no Parque Nacional da Tijuca. Sim, porque é o mesmo Cristo que acolhe de braços abertos o povo brasileiro do alto do Corcovado e que é símbolo da cidade maravilhosa, que se busca retirar dos prédios públicos, e com uma visibilidade muito maior, diga-se de passagem.

E o que fazer com a estátua da deusa pagã da justiça que está à frente do Supremo Tribunal Federal ou com o vitral d’A Mão de Deus, de Marianne Perreti, que fica na fachada do Superior Tribunal de Justiça? Afinal, também são representações da cultura religiosa popular ostentadas com ampla visibilidade em prédios públicos da União Federal. O conselheiro do CNJ, Oscar Argollo, quando do julgamento dos procedimentos que pediam a retirada dos crucifixos em prédios do Poder Judiciário, ressaltou que o Estado não tem o direito de se imiscuir nos costumes e nas tradições reconhecidas moralmente pela sociedade.

A laicidade do Estado, portanto, não requer a eliminação da visibilidade da religião da esfera pública, principalmente em um país que teve formação histórico-cultural cristã. Afinal, o princípio da laicidade exige do Estado uma postura neutra perante a religião e também o reconhecimento da religiosidade como fator social e cultural.

O relator do acórdão questionado, desembargador Marcelo Saraiva, destacou de maneira lúcida em seu voto que, diante da realidade cultural do Brasil, não se mostra plausível a conclusão de que, ao se deparar com um símbolo religioso, uma pessoa que professe crença diversa, ou que não adote nenhuma crença, se sinta ofendida ou constrangida.

De fato, analisando as provas testemunhais colhidas no processo, percebe- se que para a maioria dos líderes religiosos ouvidos e inclusive para grande parte dos ateus e agnósticos, a presença do crucifixo ou de qualquer outro símbolo religioso não gera sentimento de constrangimento ou de agressão. Ao contrário, para boa parte das pessoas com crenças ateístas, agnósticas ou que professam crença diferenciada, aquele símbolo nada representa, assemelhando-se a um quadro ou escultura, como um adereço decorativo. O crucifixo, na verdade, como bem assinalou o Tribunal Europeu de Direitos

Humanos, no caso Soile Lautsi x República Italiana, não é apenas um símbolo religioso, mas a representação de princípios e valores que formaram o alicerce da democracia e da civilização ocidental.

A manutenção dos crucifixos e demais símbolos religiosos em locais públicos é uma manifestação de respeito pela história e pela tradição do povo brasileiro e não uma imposição de uma crença religiosa, não podendo, portanto, ser entendido como expressão de intolerância para os não crentes.

Por fim, a manutenção dos símbolos religiosos não viola os princípios da Administração Pública, a exemplo da isonomia e da impessoalidade, e, muito menos, a imparcialidade do Poder Judiciário. É oportuno destacar que não se tem notícia que os dogmas religiosos e a presença do crucifixo tenham influenciado a Suprema Corte em julgamentos importantes.

Espera-se que o Supremo Tribunal Federal encontre, mais uma vez, uma solução pautada na tolerância em face de expressões histórico-culturais de uma sociedade  predominantemente cristã. Não se pode, mesmo diante de um Estado laico, apagar a história, a cultura e a tradição de um povo pelo simples fato de terem origem na religiosidade.

*Lorraine Vieira Nascimento é mestranda em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Estado de Goiás. Procuradora Jurídica da Arquidiocese de Goiânia. Advogada militante em favor de diversas Ordens Religiosas e associações civis. E-mail: lorrainenascimento@gmail.com.