Jurisprudência da crise e os crimes tributários

*Isabela Scelzi Amaral

Estamos vivenciando tempos conturbados, decorrente da crise desencadeada pela Covid19. Tal crise produz reflexos negativos, sobretudo, em direitos econômicos e sociais. Destacam-se as restrições ao direito de ir e vir; da continuidade da empresa; ao trabalho; ao direito à educação e ao direito a bens vitais, como água, alimentação e saúde, devido a reduções de investimentos, sendo inúmeras as demissões, que reflete ao direito a um padrão de vida adequado

Sabe-se que os impactos econômicos são certos, havendo a necessidade de proteção da dignidade das pessoas em diversas dimensões. Face a crise generalizada os posicionamentos judiciais não devem focar apenas no direito positivado estrito, desconsiderando o princípio da necessidade.

Estar-se-ia diante de um embate entre o pragmatismo jurídico, que sugere objetividade e prudência face aos impactos sociais e econômicos, e a busca pela humanização das decisões judiciais.

De fato as decisões judiciais geram impactos que repercutem em um ambiente político e econômico prejudicado, promovendo impactos variados nos setores sociais. Estando o magistrado em uma linha tênue de se descuidar dos limites de sua própria função e do problema da capacidade institucional.

Ao julgar, o magistrado observa como os tribunais constitucionais se posicionam sobre determinado assunto, pautando-se, assim, em jurisprudências. Do latim “jurisprudentia”, o termo jurisprudência significa, em um sentido amplo, ciência da lei. Em um sentido estrito, contudo, jurisprudência é o conjunto de decisões que refletem a interpretação majoritária de um tribunal e sedimentam, desse modo, um entendimento repetidamente utilizado, que guardem, entre si, uma linha essencial de continuidade e coerência.

Diante do cenário atual, que implica adaptação de todos os setores sociais, seja privado, seja público, como os posicionamentos já firmados pelos tribunais, mormente, pela Suprema Corte se moldaria as situações fáticas contemporâneas. Afirmamos que o Direito não é um fim em si mesmo, mas, sim, um processo dinâmico com finalidades sociais. À vista disso, as decisões judiciais devem ser avaliadas relativamente à sua potencialidade de resolver e pacificar conflitos reais, maximizando a normatividade do ordenamento jurídico e promovendo o bem-estar social.

Assim, o embate é nítido, face a crise atual, que efetivamente comprometam a capacidade do Estado de cumprir todas as suas obrigações devem os tribunais manter-se inerte e aplicarem apenas argumentos estritamente legais ou atuar ponderando a situação social e política?

Aqui nos deparamos com o conceito de jurisprudência da crise[1], o termo aduz a resolução do conflito entre a interpretação normativa das normas positivadas e as necessidades perante as circunstâncias atuais.

Ao julgar o RHC 163.334, o Supremo Tribunal Federal definiu que o contribuinte que, de forma contumaz, e com dolo de apropriação, deixa de recolher ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço, incide no tipo penal do artigo 2, inciso 2, da Lei 8.137, ou seja, a partir de dezembro de 2019,  os sócios podem responder pelo crime de apropriação indébita tributária pela inadimplência fiscal das empresas.

Ocorre que o julgamento feito pelo Supremo, foi proferido antes da crise atual, que ocasionou uma drástica redução da atividade econômica em decorrência do isolamento social, prejudicando expressivamente os caixas das empresas.

Com a brusca diminuição da receita muitas pessoas jurídicas podem atrasar o pagamento de tributos no período em que perdurarem os efeitos econômicos da pandemia.

Assim, muitas empresas terão de escolher se pagam tributos, funcionários ou outros gastos. Diante da situação na qual nos encontramos, é certo que a relativização do entendimento da Corte Suprema, se faz necessária, seja adotando a posicionamento da inexigibilidade da conduta adversa, haja vista, não ser possível que o empresário tome uma atitude diversa da que ele tomou, ao não recolher o tributo, com o intuito de pagar sua folha de salário, seja alegando estado de necessidade, ou de forma generalizada, se abstendo de aplicar a decisão aos casos concretos.

Seja por um ou por outro meio, ressaltamos, a necessidade do contribuinte em recolher todos os meios comprobatórios da crise enfrentada, independente, de ser pública e notória a situação.

A jurisprudência da crise abrange, assim, o equilíbrio entre a proteção da normatividade constitucional e a abertura às exigências das circunstâncias

*Isabela Scelzi Amaral é advogada tributarista

[1] considera-se a “dita” jurisprudência da crise por haver alguma dou-trina específica sobre o tema em outros ordenamentos, dentre os quais se destacam Portugal e Grécia. Na última década, a crise econômica da Eu-rozona se fez sentir mais forte nos países chamados PIGS – Portugal, Ita-lia, Grecia e Espanha – que adotaram medidas de austeridade, em nomede acordos de ajuda financeira celebrados com credores internacionais.Coube aos tribunais constitucionais avaliar a constitucionalidade des-sas medidas, o que ensejou caloroso debate na doutrina constitucional.