Relações empresariais, meio ambiente do trabalho e direitos humanos

Advogada Lara Nogueira, graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, escreve hoje na coluna sobre as  relações empresariais, meio ambiente do trabalho de direito humanos. Ela é Pós-graduada em Ciências e Legislação do Trabalho pelo Instituto de Pós-graduação e Graduação. Pós-graduada em Processo Civil pela Universidade Federal de Goiás. Professora Universitária (2021).

Confira a íntegra do texto abaixo: 

Lara Nogueira

Recentemente foi divulgado que duas grandes multinacionais (Ambev e Heineken) foram autuadas por Auditores Fiscais do Trabalho da Superintendência Regional do Trabalho do Estado de São Paulo por estarem envolvidas em um esquema de trabalho em condições análogas a de escravidão de imigrantes, em conjunto com uma empresa transportadora contratada (Sider). Os trabalhadores exerciam a função de motoristas carreteiros.

Qual o conceito de trabalho escravo atualmente? É quando o trabalhador é excluído de condições mínimas de dignidade, sendo submetido a trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes de trabalho, restrição de locomoção em razão de dívida contraída com o empregador. Este conceito é extraído do artigo 149 do Código Penal, que estabelece referido ato como crime, com pena de dois a oito anos e multa, além de aumento de pena quando a prática é realizada por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:

I – Cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

II – Mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

§ 2oA pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:

I – Contra criança ou adolescente;

II – Por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

As condições identificadas pela fiscalização do trabalho incluíam a supressão do descanso semanal remunerado, de intervalo interjornada, jornada exaustiva na direção, pagamentos extrafolha e ausência de alojamento.

As multinacionais foram responsabilizadas em razão de suas obrigações legais na fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas por parte da empresa terceirizada contratada, previstas tanto na Lei 6.019/1974 quanto na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), principalmente quanto ao cumprimento das normas de segurança e medicina do trabalho. A responsabilização decorre, ainda, da determinação de responsabilidade subsidiária nas relações decorrentes da terceirização.

Lei 6.019/1974

Art. 5º-A

(…)

§  3o É responsabilidade da contratante garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores, quando o trabalho for realizado em suas dependências ou local previamente convencionado em contrato.

(…)

  • 5oA empresa contratante é subsidiariamente responsável pelas obrigações trabalhistas referentes ao período em que ocorrer a prestação de serviços, e o recolhimento das contribuições previdenciárias observará o disposto no art. 31 da Lei no8.212, de 24 de julho de 1991.

CLT

Art. 157 – Cabe às empresas:

I – cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho;

A notícia traz reflexões importantes quanto as atitudes empresariais que dizem respeito não só quanto à ausência de observância aos direitos trabalhistas, mas principalmente ao desrespeito dos direitos do meio ambiente do trabalho e dos direitos humanos.

Quanto ao meio ambiente do trabalho, define Ney Maranhão[1], que este é a resultante da interação sistêmica de fatores naturais, técnicos e psicológicos ligados às condições de trabalho, à organização do trabalho e às relações interpessoais que condiciona a segurança e a saúde física e mental do ser humano exposto a qualquer contexto jurídico-laborativo.

A Lei nº 6.938/1981 que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente prevê que poluição é a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente prejudiquem a saúde, a segurança e o bem estar da população; criem condições adversas às atividades sociais e econômicas e aquelas que afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente. Condições estas que foram amplamente observadas no momento da fiscalização às empresas autuadas, afinal, os empregados se encontravam em nítido desrespeito aos limites da jornada legal e em condições precárias de instalações físicas e sanitárias.

Art 3º – Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:

I – meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas;

II – degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente;

III – poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:

  1. a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
  2. b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;
  3. c) afetem desfavoravelmente a biota;
  4. d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;

Caso haja descumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação de qualidade ambiental há sujeição do infrator à multa, perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais e suspensão das atividades empresariais. Ademais, caso o poluidor exponha a perigo a incolumidade humana, animal ou vegetal fica sujeito à pena de reclusão de 1 a 3 anos, ressaltando que uma das causas de aumento da pena é quando a poluição decorre de atividade de transporte.

No que se refere aos Direitos Humanos, estes são essenciais e indispensáveis à vida digna[2]. A ONU, desde o seu estabelecimento, incentiva os Estados a dar aos direitos humanos a sua devida importância, conforme previsão no preâmbulo da Declaração Universal de Direitos Humanos[3].

Internamente, o Decreto nº 9.571 de 21 de novembro de 2018 estabelece as diretrizes nacionais sobre empresas e direitos humanos, prevendo a obrigação das empresas em garantir condições decentes de trabalho, por meio de ambiente produtivo, remuneração adequada, em condições de liberdade, equidade e segurança; combate à discriminação nas relações de trabalho e promoção da valorização e o respeito da diversidade em suas áreas e hierarquias.

Dentre seus artigos cita-se o 6º e incisos, os quais imputam a responsabilidade da empresa em não violar os direitos de sua força de trabalho, de seus clientes e da comunicada, com ações cautelosas e preventivas de seus ramos de atuação, inclusive de suas subsidiárias, com o intuito de não infringir os direitos humanos.

Art. 6º É responsabilidade das empresas não violar os direitos de sua força de trabalho, de seus clientes e das comunidades, mediante o controle de riscos e o dever de enfrentar os impactos adversos em direitos humanos com os quais tenham algum envolvimento e, principalmente:

I – Agir de forma cautelosa e preventiva, nos seus ramos de atuação, inclusive em relação às atividades de suas subsidiárias, de entidades sob seu controle direito ou indireto, a fim de não infringir os direitos humanos de seus funcionários, colaboradores, terceiros, clientes, comunidade onde atuam e população em geral;

(…)

III – evitar impactos e danos decorrentes das atividades de suas subsidiárias e de entidades sob seu controle ou vinculação direta ou indireta;

Menciona-se, ainda, o artigo 7º e incisos, que tratam especificamente da manutenção de compromisso empresarial com as políticas de erradicação do trabalho análogo à escravidão e garantia de ambiente de trabalho saudável e seguro; com avaliação e monitoramento de contratos firmados com fornecedores, parceiros e clientes prevendo cláusulas que impeçam trabalho infantil ou análogo à escravidão; e o ônus de não manter relações comerciais com empresas ou pessoas que violem os direitos humanos.

Art. 7º Compete às empresas garantir condições decentes de trabalho, por meio de ambiente produtivo, com remuneração adequada, em condições de liberdade, equidade e segurança, com iniciativas para:

(…)

III – manter compromisso com as políticas de erradicação do trabalho análogo à escravidão e garantir ambiente de trabalho saudável e seguro;

IV – Não manter relações comerciais ou relações de investimentos, seja de subcontratação, seja de aquisição de bens e serviços, com empresas ou pessoas que violem os direitos humanos;

(…)

VI – Avaliar e monitorar os contratos firmados com seus fornecedores de bens e serviços, parceiros e clientes que contenham cláusulas de direitos humanos que impeçam o trabalho infantil ou o trabalho análogo à escravidão;

Importante também citar o artigo 9º e incisos os quais incumbem às empresas a prestação de contas, de forma clara, transparente e leal, sobre os riscos das operações realizadas, informando publicamente quais foram as medidas adotadas para evitar riscos e mitigar impactos negativos.

Art. 9º Compete às empresas identificar os riscos de impacto e a violação a direitos humanos no contexto de suas operações, com a adoção de ações de prevenção e de controle adequadas e efetivas e, principalmente:

I – Realizar periodicamente procedimentos efetivos de reavaliação em matéria de direitos humanos, para identificar, prevenir, mitigar e prestar contas do risco, do impacto e da violação decorrentes de suas atividades, de suas operações e de suas relações comerciais;

II – Desenvolver e aperfeiçoar permanentemente os procedimentos de controle e monitoramento de riscos, impactos e violações e reparar as consequências negativas sobre os direitos humanos que provoquem ou tenham contribuído para provocar;

III – adotar procedimentos para avaliar o respeito aos direitos humanos na cadeia produtiva;

IV – Prestar contas com clareza, transparência e lealdade sobre os riscos da operação nos direitos humanos e as medidas adotadas para preveni-los, além dos impactos negativos e dos danos aos direitos humanos que tenham sido causados ou que tenham relação direta com suas operações, seus produtos ou os serviços prestados por meio de suas relações comerciais e das ações de reparação adotadas;

V – Informar publicamente as medidas que adotaram no último ciclo para evitar riscos, mitigar impactos negativos aos direitos humanos e prevenir violações, com base em compromisso assumido pela empresa, consideradas as características do negócio e dos territórios impactados por suas operações;

VI – divulgar e identificar publicamente aos seus fornecedores as normas de direitos humanos às quais estejam sujeitos, de modo a possibilitar o controle por parte dos trabalhadores e da sociedade civil, ressalvado o sigilo comercial.

Todas essas análises refletem a importância da prevenção e cuidado das empresas na realização de contratações de parceiros, terceirizados, dentre outros, que irão realizar atividades meio ou atividades fim, pois o descuido ou omissão, principalmente naquilo que envolve o meio ambiente do trabalho e os direitos humanos dos trabalhadores, certamente trarão sérias consequências.

 

Lara Nogueira

 

Advogada. Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Pós-graduada em Ciências e Legislação do Trabalho pelo Instituto de Pós-graduação e Graduação. Pós-graduada em Processo Civil pela Universidade Federal de Goiás. Professora Universitária (2021).

[1] MARANHÃO, Ney. Poluição Labor-Ambiental: Abordagem conceitual da degradação das condições de trabalho, da organização do trabalho e das relações interpessoais travadas no contexto laborativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 126.

[2] RAMOS, Andre de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2014, p.24.

[3] “Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações.”. (Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948).