O direito à desconexão frente ao home office foi o tema escolhido para a coluna desta terça-feira (8). Quem vai abordar o tema é a advogada trabalhista Priscila Silva Machado. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, pós-graduanda em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás com a Escola Superior da Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Goiás. É Membro da Comissão de Direito Trabalho da Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil de Aparecida de Goiânia.
Leia a íntegra do texto abaixo:
A pandemia causada pelo coronavírus tornou-se uma realidade mundial, apresentando não somente um vírus, mas também uma nova realidade. Ocorre então uma mudança drástica na forma de se trabalhar, na metodologia de trabalho e no modo como o empregador poderia exercer seu poder diretivo neste cenário. Ganha força e cenário o home office.
A mudança brusca e repentina gerou uma série de incertezas e de desconfortos para boa parte da classe trabalhadora, que se acostumou a trabalhar nas dependências da empresa. Várias adversidades surgiram como: ausência de local adequado à execução do trabalho a distância e a coexistência integral de família e trabalho. Logo, aquela mentalidade de que o home office é uma dádiva para o empregado, que consegue ser muito produtivo e até trabalhar menos, por estar distante da gerência imediata de seu supervisor, passa a ser questionada.
Certo é que a pandemia acelerou o que o futuro nos reservava. A adoção do home office é uma tendência natural do mercado e, deste modo, irreversível. A justificativa está no aumento da tecnologia no ambiente de trabalho, assim as atividades presenciais são cada vez menos necessárias.
Tal modalidade de trabalho sustenta-se em valores como iniciativa, responsabilização, autocontrole e confiança, que caracterizam a sociedade de desempenho. Em tese, propicia maior flexibilidade de horário.
Na perspectiva do empregador temos a redução de custos e uma nova utilização do espaço físico. Para o trabalhador, como principal, é indiscutível que seja a desnecessidade de deslocamento, também tendo o conforto de se trabalhar em casa e a flexibilidade de horário.
Entretanto, na maioria das vezes o trabalhador em home office está submetido a um controle de jornada ainda mais intenso do que o do trabalhador presencial, bem como tem uma carga de serviço superior. Segundo dados da NordVPN, uma fornecedora de um programa que conecta os computadores domésticos com os servidores das empresas, as pessoas passaram a trabalhar mais, até duas horas diárias a mais na Europa e três nos Estados Unidos.[1]
O home office se apresenta como realidade no cenário atual, bem como seus efeitos, sendo o principal deles a ausência da desconexão do trabalho.
O direito à desconexão tem por finalidade garantir o descanso, proteger a saúde e a qualidade de vida do trabalhador evitando a degradação das condições de trabalho. Tal tema é de tamanha importância que representou grande parte da pauta de reivindicações operárias na Revolução Industrial, no momento de surgimento do Direito do Trabalho, ilustrado pelo lema gritado na Inglaterra à época de tal luta: “eight hours to work, eight hours to play, eight hours to sleep and eight shillings a day.”.
A França, em 2016, se consagrou como o primeiro país a instituir no Código do Trabalho medidas expressas de efetivação do direito ao descanso. Com a alteração da legislação trabalhista francesa, o direito de se desconectar se tornou um tema adicional na negociação anual obrigatória sobre igualdade profissional entre homens e mulheres e a qualidade de vida no trabalho (UGICT-CGT, 2017). Em seguida, mas ainda em 2016, fora publicada a lei El Khomri, entrando em vigor em 1º de janeiro de 2017, conhecido como a Lei de Desconexão.
Cumpre ressaltar que, em que pese, ter sido a França o primeiro país a legislar de forma expressa o direito à desconexão, esta medida já havia sido adotada desde 2011 pela Volkswagen, na Alemanha, através de bloqueio de acesso ao e-mail pelos funcionários das 18h15min de um dia às 7h do dia seguinte. [2]
O direito à desconexão não pertence de fato somente ao empregado vítima da jornada sem desconexão. Também se destina à toda coletividade. Abarcados em tal definição os desempregados que não conquistam a vaga que poderia ser gerada pela melhor distribuição do trabalho, às crianças, idosos, enfermos e outros familiares e amigos do trabalhador ao qual é negado à direito desconexão, o ciclo de convívio afetado pela limitação da presença do ente querido.
A mesclagem de tarefas cotidianas do trabalhador com sua vida privada, no ambiente que seria de descanso agravado com fatores de dispersão ainda mais acentuados durante a pandemia, pode resultar no desrespeito aos parâmetros legais de duração do trabalho.
A tecnologia que é fundamental para a existência do trabalho em home office, propicia não apenas o trabalho à distância, mas também a possibilidade do empregador contactar o empregado a qualquer hora, somado ao fato de que o ambiente de descanso do trabalhador também é o ambiente de trabalho.
A 7ª Turma do TST, no julgamento do AIRR-2058-43.2012.5.02.0464, por unanimidade, desproveu o agravo e um analista de suporte da empresa reclamada obteve o direito de ser indenizado por ofensa ao “direito à desconexão”. O ministro Claudio Mascarenhas Brandão, relator do agravo, afirmou que o “o avanço tecnológico e o aprimoramento das ferramentas de comunicação devem servir para a melhoria das relações de trabalho e otimização das atividades, jamais para escravizar o trabalhador”[3].
O home office intensificado pelo isolamento social certamente permanecerá, inicialmente pelas várias dúvidas sobre as ondas do Covid-19, e porque o futuro próximo é o trabalho remoto, que pode ser realizado em qualquer lugar.
A conexão virtual ao trabalho advinda do home office, praticada na forma de escravidão tecnológica e ferindo o direito à desconexão, afronta direito mínimo fundamental do trabalhador e, portanto, passível de reparação extrapatrimonial por dano existencial, que tem por finalidade reparar a retirada do direito de lazer e da convivência do trabalhador com seus familiares e amigos, sem prejuízo da reparação patrimonial que se dá com o pagamento dos adicionais legalmente devidos.
[1] ALFAGEME, Ana. O sonho do ‘home office’ vira pesadelo na pandemia. Publicado em 09/08/2010. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-08-09/o-teletrabalho-nao-era-isto.html>. Acesso em: 25 fev 2021.
[2] VOLKSWAGEN bloqueia emails fora do horário comercial. Publicado em 23/11/2011. Disponível em: <https://www.codigofonte.com.br/noticias/volkswagen-bloqueia-emails-fora-do-horario-comercialL>. Acesso em: 25/02/2021.
[3] AIRR-2058-43.2012.5.02.0464, Relator Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 27/10/2017