A retenção de passaporte em execução de reclamação trabalhista

A retenção de passaporte em execução de reclamação trabalhista é o tema da coluna Rota Trabalhista desta quarta-feira (8). A colega Lara Nazareth Ribeiro é quem vai escrever sobre a temática. Ela é formada em Direito pela Universidade Federal de Goiás (2016), especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Goiás (2018) e especialista em Direito Público na Faculdade Legale (Faleg) – São Paulo (2019). Membro da Comissão Especial de Estudos Processuais (CEEP) da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Goiás (OAB-GO). Advogada no Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Federal de Goiás (NPJ-FD/UFG), no âmbito do Projeto de Extensão “Acesso à justiça e direitos humanos: assistência e assessoria jurídica gratuita para a população”. Experiência como advogada controller. Advogada no escritório Kafuri Riemann Advogados.

Confira a íntegra do texto:

Lara Nazareth Ribeiro

O poder do magistrado de garantir o cumprimento de uma ordem judicial se refere a qualquer decisão no processo, mas ganha destaque na execução, pois basta que o exequente veicule sua pretensão delimitando o bem da vida a ser ou não concedido pelo juiz, para que o juiz não necessite de mais nenhum estímulo para tomar qualquer medida com o fim de satisfazer o direito.

Tradicionalmente, o Judiciário só poderia se utilizar dos meios executivos previstos em lei, porém muitas vezes os meios típicos são insuficientes e distantes da realidade, o que fez surgir o modelo jurisdicional atual que confere um poder geral de efetivação das decisões judiciais, fundado parcialmente na atipicidade dos meios executivos. Parcialmente, porque ainda temos alguns meios executivos previstos em lei.

O artigo 139, IV, CPC, aplicável ao processo trabalhista por força do artigo 769, CLT, inclusive nas ações que tenham por objeto o pagamento de dinheiro, consagra o princípio da atipicidade dos meios executivos ou princípio da concentração dos poderes de execução do juiz, tal como já previsto no CPC de 1973, o que se insere no contexto de fortalecimento do Judiciário como um dos pilares do Neoprocessualismo.

No mesmo sentido, o artigo 765, CLT, confere ampla liberdade ao magistrado para dirigir o processo, observando o princípio da celeridade processual, consentâneo com o artigo 5°, LXXVII, CF, que prevê a razoável duração do processo.

Nesse ponto, debatem-se os limites da utilização de medidas atípicas, como a análise da possibilidade de determinação de retenção de passaporte do devedor em execução de crédito trabalhista, na qual entram em conflito o direito de locomoção (ir, vir e ficar) do devedor perante o direito do credor de obter a prestação jurisdicional.

Primeiramente, a medida não pode ser contrária ao ordenamento jurídico como um todo, que é o que restringe a possibilidade de se limitar a liberdade de locomoção, como, por exemplo, na vedação de prisão civil, exceto do devedor de pensão alimentícia, o que encontra respaldo na Convenção Americana de Direitos Humanos e na súmula vinculante 25.

Para Fredie Didier (2017), o artigo 139, IV, CPC, deve ser aplicado com base no sistema de precedentes obrigatórios, sendo que a jurisprudência se utiliza da Proporcionalidade, prevista no artigo 8º, CPC, como critério para a fixação de medida executiva atípica.

Já Araken de Assis (apud DIDIER JR, 2017) propõe uma interpretação do CPC à luz do artigo 5º, LIV, da Constituição, que estabelece que nenhum indivíduo será privado de seus bens sem o devido processo legal, o que não impediria a adequação do meio executivo pelo juiz ao caso concreto, mas desde que fosse observada a tipicidade. Então, ele é um defensor da tipicidade dos meios executivos.

Lenio Streck (2016), por sua vez, reconhece a dificuldade de se dar efetividade à execução, mas como crítico do protagonismo judicial, defende que a decisão seja tomada em conjunto com as partes, em uma estrutura processual comparticipada.

Há autores, ainda, que defendem que as medidas executivas atípicas só poderiam ser utilizadas após esgotadas as medidas típicas e que, em respeito à garantia do mínimo existencial, não poderia o juiz determinar medidas atípicas quando for declarada a inexistência de bens penhoráveis, exceto se o devedor expõe uma vida de luxo que faz presumir a ocultação desses bens (ABREU; CARREIRA, 2018).

Eduardo Talamini (2018) afirma que o juiz não deve determinar a medida que mais puna aquele a quem ela se endereça, mas sim uma medida que efetivamente vá possibilitar o cumprimento da ordem judicial.

São também criticadas as decisões que apontam justificativas genéricas para a aplicação de medidas atípicas. Nesse ponto da motivação das decisões judiciais, a Proporcionalidade tem um papel de grande valor, como no caso da imposição de retenção de passaporte, em que o juiz deve explicar como essa determinação seria capaz de compeli-lo a cumprir a obrigação (isto é, a adequação do meio eleito), por que esse seria o meio menos gravoso de obter a satisfação do direito do credor (relacionado à regra da necessidade), além da análise de colisão entre direitos fundamentais (proporcionalidade em sentido estrito).

No julgamento de recurso ordinário em habeas corpus, o Tribunal Superior do Trabalho (2020) deu parcial provimento para reconhecer o cabimento do habeas corpus, quanto à retenção do passaporte, por se tratar de ato que viola diretamente o direito de locomoção. No mérito, concedeu a ordem de habeas corpus para desconstituir a medida executiva consistente na apreensão do passaporte do paciente e determinou a sua devolução.

No caso, o magistrado de primeiro grau, em fase de execução de reclamação trabalhista, havia determinado a retenção do passaporte dos sócios da empresa executada após frustradas outras medidas executórias.

Diante disso, o TST entendeu que a decisão do juízo a quo não apresentou fundamentos jurídicos suficientes e relevantes para justificar a medida extrema de retenção do passaporte do paciente, pois não havia sido indicada a existência de provas ou indícios nos autos de que o devedor tinha patrimônio para quitar a dívida, mas maliciosamente ocultava e blindava os seus bens, impedindo a constrição, ou ainda que o executado mantivesse estilo de vida incompatível com o seu estado de insolvência e incapacidade econômica.

Sobre o tema, Marcelo Abelha (2018) entende como plenamente cabível a apreensão de passaporte, quando, por exemplo, o executado compra e vende bens provenientes do exterior e não realiza a devida declaração e não se obtém sucesso na aplicação de meios executivos típicos de sub-rogação, já que neste caso a apreensão do passaporte acarretaria uma pressão psicológica mais eficiente a conduzir ao cumprimento da obrigação inadimplida. A apreensão do passaporte não pode funcionar como punição, o que exigiria lei prévia, assim como as demais medidas atípicas, como apreensão de carteira de habilitação, bloqueio da TV a cabo, proibição de frequentar estádios, entre outras, sempre adequadas ao caso concreto.

Com tais considerações, relativas à necessidade de fundamentação da decisão, à proibição do excesso, à observância de proporcionalidade, contraditório, eficiência e menor onerosidade ao devedor, o Judiciário tem o difícil papel de delimitar a aplicação do artigo 139, IV, CPC, na análise de cada caso para que não seja utilizada a retenção de passaporte como sanção, mas como forma de compelir à satisfação do crédito.

*Lara Nazareth Ribeiro é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás (2016), especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Goiás (2018) e especialista em Direito Público na Faculdade Legale (FALEG) – São Paulo (2019). Membro da Comissão Especial de Estudos Processuais (CEEP) da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Goiás (OAB-GO). Advogada no Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Federal de Goiás (NPJ-FD/UFG), no âmbito do Projeto de Extensão “Acesso à justiça e direitos humanos: assistência e assessoria jurídica gratuita para a população”. Experiência como advogada controller. Advogada no escritório Kafuri Riemann Advogados.

 

REFERÊNCIAS:

ABELHA, Marcelo Rodrigues. O que fazer quando o executado é um cafajeste? Apreensão de passaporte? De carteira de motorista?. In: DIDIER JR, Fredie (coord.). Coleção grandes temas do novo CPC: medidas executivas atípicas. Salvador: Editora Juspodivm, 2018, V. 11.

ABREU, Vinicius Caldas da Gama; CARREIRA, Guilherme Sarri. Dos poderes do juiz na execução por quantia certa: da utilização das medidas inominadas. In: DIDIER JR, Fredie (coord.). Coleção grandes temas do novo CPC: medidas executivas atípicas. Salvador: Editora Juspodivm, 2018, V. 11.

BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso Órdinário: 8790-04.2018.5.15.0000, SBDI-II, rel. Min. Evandro Pereira Valadão Lopes, red. p/ acórdão Min. Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Data de Julgamento: 19 ago. 2020.

DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: execução. 7. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2017, v. 5.

TALAMINI, Eduardo. Cap. 31: Medidas coercitivas e proporcionalidade: o caso whatsapp. In: DIDIER JR, Fredie (coord.). Coleção grandes temas do novo CPC: medidas executivas atípicas. Salvador: Editora Juspodivm, 2018, V. 11.

STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle. Como interpretar o artigo 139, IV, do CPC? Carta branca para o arbítrio? CONJUR, publicado em 25 ago. 2016.