Até onde presumir a veracidade dos atos da administração?

O exemplo é tão simplório quanto corriqueiro: o motorista trafega em seu veículo em determinado dia,  horário e rua da cidade. Pouco tempo depois é surpreendido com uma notificação prévia do órgão de trânsito imputando a ele uma infração que tem certeza não ter cometido, seja por nunca ter trafegado naquele local, seja porque, de fato, não cometeu a infração.

Pior ainda: percebe o cidadão contra quem é imputado a sanção administrativa, que ele foi autuado por um agente de trânsito e não por aparelhos que captam foto, filmagem ou os parâmetros que em tese violou e, por isso mesmo, redundou na imputação.

Em síntese, a autuação baseia-se, simplesmente, na narrativa do agente de trânsito, sem nenhuma outra prova.

Irresignado, o sujeito interpõe recurso contra a imputação na crença de que a administração pública considerará de maneira minimamente séria seus argumentos ou apresentará provas que servirão de lastro à imputação.

Pouco tempo depois recebe a resposta de seu recurso, dizendo, simplesmente, que ele não provou que não cometeu a infração.

Alega a agência de trânsito que vige o princípio da presunção de veracidade dos atos do Estado e que se um agente do Estado – no caso o agente de trânsito – narra determinada situação, aquilo é tido como verdade a menos que o interessado prove o contrário.

Desolado, o cidadão paga a multa mesmo certo de que não infringiu qualquer norma de trânsito. Reforça-se neste cidadão a descrença no Estado e nos homens que o compõem.

Essa situação é apenas uma das inúmeras que podem acontecer e que, rotineiramente acontecem, nas mais diversas áreas de atuação do Estado por uma distorção ou má interpretação do que, de fato, é o princípio da veracidade dos atos da administração.

Essa princípio foi engendrado com a função de manter o aparelho estatal em funcionamento ininterrupto enquanto os atos do Estado não forem tido, naquele particular, como inverídicos.

Ocorre que, principalmente o Executivo, seja na administração direta ou indireta, potencializa ao grau máximo esse princípio utilizando-o como ferramenta de arbítrio.

Em verdade, dizer que os atos da administração e de seus agentes são verdadeiros não exime a administração de, quando questionada, justificar, com provas, aquilo que foi alegado.

No exemplo acima, duas hipóteses: se o sujeito que recebeu a autuação paga e não questiona, funcionou perfeitamente o princípio da veracidade, afinal, valeu a mera alegação do agente do Estado. Do contrário, se questionado, ao Estado é imposta a obrigação de provar aquilo que alegou.

Naquela hipótese, o Estado deveria apresentar provas, vídeos, filmagens e, não as tendo, reconhecer a falta de prova e anular a autuação.

Até porque, falemos a verdade: é impossível que o cidadão faça prova negativa. É impossível provar que não fez, que não estava, que não era assim. Esse é do dever do Estado em todas as suas esferas.

Como ao Ministério Público é dever juntar provas para lastrear aquilo que alega em suas ações. Como ao juiz é dever juntar provas para demonstrar suas decisões. Ao agente da administração é dever provar aquilo que alega, principalmente se a alegação do Estado pode gerar danos, ainda que patrimoniais, aos cidadãos.

Do contrário, estaríamos admitindo que os agentes administrativos possuem super poderes que aproximam eles do período perigoso do ‘the king can do no wrong’.

*Carlos Vinícius Alves Ribeiro, Mestre e Doutorando em Direito do Estado pela USP, Professor de Direito Público, Promotor de Justiça.