Quem são os anões brasileiros de hoje?

Em 1990 surgiu na França um jogo que passou a ser explorado comercialmente por discotecas e casas noturnas: era o arremesso de anões. Vencia quem fazia o lançamento à maior distância.
 
Foi então que o Prefeito Morsang-sur-Orge, uma pequena cidade onde a “diversão acontecia”, localizada a 23 quilômetros ao sul de Paris, emitiu uma ordem proibindo esses shows em sua cidade. Em Aix-en-Provence, no sul da França, meses depois, o Prefeito também interditou as “brincadeiras com anões”.

Surgiu então uma enorme celeuma. Os empresários alegavam que o jogo ocorria em um estabelecimento privado e consistia em um acordo de vontades, entabulado contratualmente, entre pessoas privadas e capazes. Sustentavam que a brincadeira apenas existia por haver um acordo de interesses entre todos os envolvidos: os proprietários das casas noturnas, a plateia que pagava e os próprios “anões-projéteis”.

Em verdade, eles próprios, os anões, se revoltaram contra a determinação administrativa. Disseram que estavam plenamente de acordo com a brincadeira e que eram muito bem remunerados pelo trabalho.

Os atos administrativos foram questionados pelos proprietários das casas noturnas, tendo, tanto o Tribunal Administrativo de Versailles, em 25 de fevereiro de 1992, como o Tribunal Administrativo de Marseille, em 8 de outubro do mesmo ano, dito que aquelas determinações administrativas excediam o poder de polícia dos Prefeitos.

A questão chegou ao Conselho de Estado Francês e em 27 de outubro de 1995 considerou-se que as decisões tomadas pelos Tribunais Administrativos locais que mantinham a “brincadeira” eram contrárias à dignidade da pessoa humana, tendo decidido o Conselho de Estado que esta dignidade integra a noção de ordem pública e por essa razão o administrador local poderia regular essas questões com o manejo do Poder de Polícia.

Esses fatos chamam a atenção por vários motivos: o primeiro é que justo no berço dos direitos fundamentais, a França, muito recentemente, no início da década de 90, um espetáculo chamou a atenção por violar direitos humanos.
 
O segundo ponto que gera estranheza é o fato de as supostas vítimas das violações, os anões, terem se indignado contra a medida da Prefeitura que era tendente a preservar seus próprios direitos.

A conclusão também é bastante incomum: a administração pública maneja poder de polícia para restringir a liberdade que em tese os anões teriam de se autocolocarem em situações de violação aos seus próprios direitos à dignidade humana.

É, em última análise, uma restrição à liberdade para a tutela de outro direito, mesmo contra a vontade do titular.

Transplantando no tempo e no local, restam algumas perguntas: quem são os anões de hoje? Quem vende sua dignidade? Os nossos gestores são tão eficazes nesta tutela quanto os Prefeitos das duas cidades francesas? E nosso Judiciário, que saída daria?

*Carlos Vinícius Alves Ribeiro, Mestre e Doutorando em Direito do Estado pela USP, Professor de Direito Público, Promotor de Justiça