Somente a União pode legislar sobre ideologia de gênero nas escolas

*Carlos Eduardo Rios do Amaral

A Constituição Federal de 1988, em seu Art. 22, Inciso XXIV, é muito clara a respeito da competência privativa da União Federal para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional. O dispositivo veda, assim, a concorrência da matéria ou sua delegação aos demais Entes da Federação (Estados e Municípios).

E se assim não fosse, o Art. 24, Inciso IX, da Constituição, estabelece a competência da União para estabelecer normas gerais em matéria de educação. A inobservância desse preceito por Assembleias Legislativas ou Câmaras de Vereadores, ultrapassando os limites da competência normativa suplementar, fulmina de inconstitucionalidade qualquer processo legislativo neste sentido. Acaso sancionada, a norma vacilante será declarada nula pelo Supremo Tribunal Federal.

Pelo menos em duas oportunidades o Supremo já se manifestou sobre a proibição de ideologia de gênero em escolas através de leis municipais. Uma, na Medida Cautelar em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 461 e, a outra, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 526. Em ambos os casos a Corte Constitucional suspendeu liminarmente a eficácia das leis locais que proibiam a veiculação de conteúdo relacionado à ideologia de gênero ou à orientação sexual e mesmo a utilização do termo “gênero” nas Escolas.

Mas o Supremo, nestes dois casos, foi além do reconhecimento da inconstitucionalidade formal (vício de iniciativa) das normas atacadas. Tanto o Ministro Roberto Barroso, assim como o Ministro Dias Toffoli, reconheceram a inconstitucionalidade material das leis questionadas. Para estes Membros da Corte Suprema a proibição da ideologia de gênero em escolas entra em rota de colisão com diversos preceitos insculpidos no texto da Constituição Federal de 1988.

Vejamos:

“Vedar a adoção de políticas de ensino que tratem de gênero, de orientação sexual ou que utilizem tais expressões significa impedir que as escolas abordem essa temática, que esclareçam tais diferenças e que orientem seus alunos a respeito do assunto, ainda que a diversidade de identidades de gênero e de orientação sexual seja um fato da vida, um dado presente na sociedade que integram e com o qual terão, portanto, de lidar.

(…)

A proibição de tratar de conteúdos em sala de aula sem uma justificativa plausível, à toda evidência, encontra-se em conflito com tais valores. Em primeiro lugar, não se deve recusar aos alunos acesso a temas com os quais inevitavelmente travarão contato na vida em sociedade. A educação tem o propósito de prepará-los para ela. Além disso, há uma evidente relação de causa e efeito entre a exposição dos alunos aos mais diversos conteúdos e a aptidão da educação para promover o seu pleno desenvolvimento. Quanto maior é o contato do aluno com visões de mundo diferentes, mais amplo tende a ser o universo de ideias a partir do qual pode desenvolver uma visão crítica, e mais confortável tende a ser o trânsito em ambientes diferentes dos seus. É por isso que o pluralismo ideológico e a promoção dos valores da liberdade são assegurados na Constituição e em todas as normas internacionais antes mencionadas.

A norma impugnada caminha na contramão de tais valores ao impedir que as escolas tratem da sexualidade em sala de aula ou que instruam seus alunos sobre gênero e sobre orientação sexual. Não tratar de gênero e de orientação sexual no âmbito do ensino não suprime o gênero e a orientação sexual da experiência humana, apenas contribui para a desinformação das crianças e dos jovens a respeito de tais temas, para a perpetuação de estigmas e do sofrimento que deles decorre”. – Ministro Luís Roberto Barroso

Ainda:

“A supressão de conteúdo curricular é medida grave que atinge diretamente o cotidiano dos alunos e professores na rede municipal de ensino com consequências evidentemente danosas, ante a submissão em tenra idade a proibições que suprimem parte indispensável de seu direito ao saber”. – Ministro Dias Toffoli

Como se vê, apesar de Estados e Municípios deterem competência para suplementar a legislação federal e adaptá-la à sua realidade local, naquilo que for peculiar ao seu sistema de ensino, não poderão estes Entes Federativos menores dispor de modo contrário ao conteúdo estabelecido na legislação federal, muito menos afrontar preceitos fundamentais insculpidos na Constituição, como o do pluralismo de concepções pedagógicas (Art. 206, Inciso I) e o do direito à liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (Art. 206, Inciso II).

*Carlos Eduardo Rios do Amaral é defensor público do Estado do Espírito Santo