Da cobrança ilícita do ITBI sobre operações de integralização de bens imóveis rurais em capital social de holdings rurais

Leonardo Amaral*

  1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO TEMA

A adoção de holdings rurais como mecanismo de gestão patrimonial e sucessória tem intensificado o debate jurídico-fiscal, especialmente no que tange à transferência de imóveis rurais para o capital social. Essa prática, motivada pela necessidade de alinhar a herança familiar com estratégias gerenciais avançadas, implica consideráveis complexidades tributárias, notadamente na incidência e cálculo do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI).

O cerne deste estudo é explorar as repercussões fiscais da cobrança do  ITBI por municípios após a decisão do Supremo Tribunal Federal no Tema 796, analisando o confronto dessas práticas com os princípios constitucionais, especialmente o da vedação à bitributação.

A incorporação de bens imóveis ao capital social de entidades jurídicas, como holdings rurais, pode ocorrer sob duas óticas de avaliação: o custo histórico, como registrado na declaração de rendimentos da pessoa física, e o valor de mercado, refletindo o potencial de venda atual, conforme art. 23 da Lei 9.249/1995.

A preferência histórica pela transferência de bens ao capital social pelo custo histórico, visando o não pagamento do IR sobre ganho de capital, é desafiada pela interpretação dada pelos municípios à tese fixada pelo STF no julgamento do Tema 796. Este postula que a imunidade ao ITBI, prevista constitucionalmente, não se estende ao valor que ultrapassa o capital integralizado. Tal interpretação, adotada por municípios, tem fomentado disputas judiciais, sob a alegação de violação à imunidade tributária.

Este artigo argumenta que a cobrança do ITBI sobre a diferença entre o valor de mercado e o custo histórico, em processos de integralização de capital social com imóveis, constitui verdadeira bitributação, haja vista a invasão de competência tributária da União pelos municípios, contrariando a Constituição Federal. Propõe-se uma análise crítica sobre essa prática municipal, destacando a necessidade de uma interpretação que respeite os princípios tributários fundamentais e evite a bitributação.

  1. INTEGRALIZAÇÃO DE BENS IMÓVEIS AO CAPITAL SOCIAL

Na dinâmica de constituição ou ampliação do capital social de uma pessoa jurídica, sócios ou acionistas contribuem com bens, direitos ou capital, recebendo em troca cotas ou ações. Quando se trata de bens imóveis, que é a prática comum na formalização de sociedades familiares para exploração da atividade rural, a legislação tributária brasileira concede a possibilidade de tais bens serem transferidos a partir de duas bases de avaliação: pelo custo histórico, correspondente ao valor original de aquisição e que está registrado na declaração de renda pessoa física, ou pelo valor de mercado, que reflete o potencial de venda atual (art. 23 da Lei 9.249/1995).

Optando-se pelo valor de mercado, surge a obrigação de recolhimento do Imposto de Renda sobre o ganho de capital (IR-GCAP), representado pela diferença positiva entre o valor de transferência e o custo de aquisição do imóvel rural. O ganho de capital é caracterizado pela valorização do imóvel ao longo do tempo, e no caso de imóveis rurais, isso ocorreu de forma acentuada nos últimos anos, em decorrência do crescimento do setor do agronegócio.

Assim, quando um produtor rural formaliza uma pessoa jurídica (agropecuária ou holding rural) integralizando uma fazenda avaliada em R$2.000.000,00, tendo adquirido e registrado em sua declaração de renda o imóvel por R$1.000.000,00, a operação resulta em um ganho de capital de R$1.000.000,00. Este ganho imobiliário fica submetido ao recolhimento do IR-GCAP, cujas alíquotas variam entre 15% a 22,5%, O imposto devido neste exemplo seria de R$150.000,00 e deve ser recolhido até o último dia útil do mês subsequente à integralização, de acordo com a Lei n. 8.981/1995, desconsiderando quaisquer fatores redutores previstos em lei.

Na prática, para evitar a obrigação de recolher o IR-GCAP, a  preferência do sócio pessoa física sempre foi optar por transferir os bens imóveis para o capital social pelo seu custo histórico.

Entretanto, a situação se complica com a interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) no Tema 796. O STF estabeleceu que a imunidade do ITBI, prevista na Constituição, não se aplica ao valor que excede o capital a ser integralizado.

  1. DA INTERPRETAÇÃO MUNICIPAL EQUIVOCADA AO TEMA 796 – STF

Ao julgar o Tema 796, o STF estabeleceu que a imunidade do ITBI, prevista na Constituição (156, § 2º, inciso I ) não se aplica ao valor que excede o capital a ser integralizado.

Essa decisão tem sido interpretada pelos municípios como um aval para cobrar ITBI sobre a diferença entre o valor de mercado e o custo histórico de bens imóveis rurais integralizados, o que vem gerando questionamentos judiciais por parte dos contribuintes.

Em minha concepção, em primeiro lugar, é preciso reconhecer que a tese fixada pelo STF no Tema 796 não se aplica às hipóteses de integralização em que o valor do capital social integralizado é exatamente igual ao custo histórico do bem imóvel incorporado pelo sócio pessoa física. É situação totalmente diversa do que fora objeto de julgamento pela corte suprema[1].

Logo, a interpretação dada pelos municípios à referida decisão, de forma a se permitir a cobrança do ITBI na hipótese mencionada,  viola claramente à regra constitucional da não incidência prevista 156, § 2º, inciso I, da CF/88 (imunidade do ITBI).

Além disso, em minha concepção, a exigência do ITBI nessas circunstâncias configura uma bitributação, pois resulta em duas pessoas políticas tributando um mesmo fato jurídico, o que, em regra, é vedado em nosso ordenamento.[2]

  1. BITRIBUTAÇÃO

Na interpretação dos municípios, a decisão do STF autorizou a cobrança do ITBI quando o valor da operação de transferência do bem imóvel ao capital social da sociedade provocar a ocorrência de uma diferença a maior entre o valor venal (de mercado) e o atribuído ao contrato social (que em regra é o valor registrado na declaração de renda do sócio).

Na verdade, o município está exigindo o ITBI sobre a operação de integralização de bem imóvel ao capital social com uma valorização, mas que por expressa autorização legislativa, sofrerá a incidência do IR em operação futura. Logo, entendo que nessa hipótese um mesmo fato econômico está submetido à incidência de duas normas de incidência tributária de forma incompatível com a Constituição Federal.

Nos ensinamentos do Professor Robson Maia Lins a bitributação, que em regra é vedada, “implica na impossibilidade de um mesmo fato jurídico ser tributado por mais de uma pessoa jurídica”[3].

É possível constatar que o evento do ITBI, na hipótese de incorporação de bens imóveis, é “integralizar bem imóvel em capital social pelo custo histórico”. Já o IR-GCAP é “integralizar bem imóvel em capital social pelo valor de mercado”.

Em ambos os casos há uma única demonstração de riqueza. Ao transferir o imóvel pelo custo histórico, o sócio pessoa física já tem um ganho, mas que sofrerá a incidência do Imposto Sobre a Renda em momento posterior, ao alienar suas cotas sociais.  Mas também sofrerá a incidência do ITBI sobre esse mesmo acréscimo.

Logo, por qualquer ângulo que se analise a questão, o que se tem é a pretensão de certos municípios de tributar o ganho de capital que não foi pago pelo contribuinte, por expressa autorização do parágrafo primeiro do artigo 23 da Lei 9.249/1995.

Um único evento – transferir bem imóvel ao capital social de pessoa jurídica – dá causa a duas possibilidades de incidência normativas tributárias realizadas por duas pessoas políticas diferentes, sendo que o critério para definir por uma ou outra é a opção feita pelo contribuinte entre o valor histórico ou de mercado do imóvel.

Trago como exemplo o Projeto de Lei Complementar n. 278/2022[4], de autoria do Poder Executivo do Município de Rio Verde, que pretende alterar a LC n. 5.727/2009 (Código Tributário Municipal – CTM), especialmente os dispositivos que disciplinam a incidência do imposto ITBI, na hipótese de incorporação de bem imóvel em capital social de pessoa jurídica, ocasião em que tive oportunidade de emitir parecer jurídico sobre a constitucionalidade da propositura a pedido do Conselho de Desenvolvimento Econômico de Rio Verde – GO – CODERV.

O referido projeto de lei complementar prevê que: i) o fato gerador será  “a ocorrência de diferença positiva entre o valor de mercado e o preço atribuído ao contrato social, nas operações de integralização de bem imóvel pelo sócio pessoa física em realização de capital social e ii) a base de cálculo “será a “diferença entre o valor venal e o atribuído ao contrato social”.

Veja que o projeto de lei complementar citado acima fixa como fato gerador e base de cálculo do ITBI tanto circunstância fática como base de cálculo[5] idênticas ao do imposto sobre a renda no ganho de capital (IR-GCAP), o que resulta em uma bitributação, isto é, submete à incidência do ITBI um fato econômico que já é tributado pelo Imposto Sobre a Renda, de competência privativa da União.

Em fevereiro de 2023, o STF proferiu decisão reconhecendo a bitributação e impedindo a exigência do Imposto de Renda na transferência do bem herdado. Mantiveram decisão do TRF da 2ª Região, favorável ao contribuinte (ARE 1387761). Vejamos trecho da referida decisão.

“O constituinte repartiu o poder de tributar entre os entes federados, introduzindo regras constitucionais, que, sobretudo no que toca aos impostos, predeterminam as materialidades tributárias. Esse modelo visa a impedir que uma mesma materialidade venha a concentrar mais de uma incidência de impostos de um mesmo ente (vedação ao bis in idem) ou de entes diversos (vedação à bitributação). Princípio da capacidade contributiva. 4. Admitir a incidência do imposto sobre a renda acabaria por acarretar indevida bitributação em relação ao imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCMD).[6]

Logo, é possível afirmar que na interpretação do STF, com fundamento no inciso I do art. 154 da CF/88, há vedação de que um mesmo evento seja objeto de competência tributária de mais de um ente federado. Logo, os municípios não podem exigir o ITBI sobre acréscimo patrimonial na transferência de imóvel.

  1. CONCLUSÃO

Essa prática dos municípios, de cobrar ITBI sobre a diferença entre o valor de mercado e o custo histórico de bens imóveis rurais em operações de integralização de capital social de pessoa jurídica, tal como uma holding rural ou agropecuária, configura uma verdadeira bitributação não autorizada pela Constituição Federal.

*Leonardo Amaral é advogado, professor IBET-GO, especialista e Mestre em Direito Tributário pelo IBET.

Referências

[1] Sobre a violação da regra da imunidade citada acima, entendo que a tese do STF se relaciona especificamente com casos de integralização de capital que envolvem subscrição de ações ou quotas com ágio, não aplicando-se diretamente às situações em que os imóveis são transferidos por pessoas físicas para a realização de capital social exclusivamente pelo custo histórico, conforme permitido pelo art.23 da Lei 9.249/1995.

[2]Lins, Robson Maia. Curso de direito tributário brasileiro. 1 ed. São Paulo: Noeses, 2019.  P. 272

[3] Lins, Robson Maia. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 1. Ed. – São Paulo: Noeses, 2019. P. 272.

[4] https://acessoainformacao.rioverde.go.leg.br/atos_adm/mp_viewer/row=156

[5] § 2º do art. 3 da lei 7.713/1988 [5]

[6] Ementa: Direito tributário. Agravo interno em recurso extraordinário com agravo. Imposto sobre a renda. Ganho de capital. Antecipação de legítima. Ausência de acréscimo patrimonial. Vedação à bitributação. 1. Agravo interno contra decisão monocrática que negou seguimento a recurso extraordinário com agravo interposto em face de acórdão que afastara a incidência do imposto de renda sobre o ganho de capital apurado por ocasião da antecipação de legítima (Lei n° 7.713/1988, art. 3º, § 3º; e Lei nº 9.532/1997, art. 23, § 1º e § 2º, II). 2. Esta Corte possui entendimento de que o imposto sobre a renda incide sobre o acréscimo patrimonial disponível econômica ou juridicamente (RE 172.058, Rel. Min. Marco Aurélio). Na antecipação de legítima, não há, pelo doador, acréscimo patrimonial disponível. Acórdão alinhado à jurisprudência desta Corte. 3. O constituinte repartiu o poder de tributar entre os entes federados, introduzindo regras constitucionais, que, sobretudo no que toca aos impostos, predeterminam as materialidades tributárias. Esse modelo visa a impedir que uma mesma materialidade venha a concentrar mais de uma incidência de impostos de um mesmo ente (vedação ao bis in idem) ou de entes diversos (vedação à bitributação). Princípio da capacidade contributiva. 4. Admitir a incidência do imposto sobre a renda acabaria por acarretar indevida bitributação em relação ao imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCMD). 5. Agravo interno a que se nega provimento.(ARE 1387761 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 22/02/2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n  DIVULG 28-02-2023  PUBLIC 01-03-2023)