Responsabilização do empregador e a Covid-19

A advogada Flávia Caroline Borges de Carvalho escreve hoje sobre a responsabilização do empregador e a Covid-19. Ela graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Federal de Goiás. Desde 2017 advoga nas áreas trabalhista e previdenciária.

Leia a íntegra do texto:

Flávia Caroline Borges de Carvalho

É indispensável para efeito de reparação por danos patrimoniais e extrapatrimoniais a conceituação legal do fato gerador do acidente do trabalho e doença profissional/trabalho. O artigo 19, caput, da Lei nº 8.213/91, conceitua o acidente típico como todo evento que decorre do exercício do trabalho, limite temporal que envolva a efetiva execução das atribuições funcionais pelo trabalhador, independentemente de qualquer critério espacial, já que o meio ambiente do trabalho é um critério dinâmico, de modo a contemplar trabalho externo, teletrabalho e terceirização realizada no estabelecimento do tomador do serviço, pelas especificidades do contrato, pode contemplar diversas realidades, desde que o trabalho executado venha provocar lesão corporal ou perturbação funcional responsável pela morte ou redução, parcial ou total temporária ou permanente, da capacidade para o trabalho.

Por outro lado e com dificuldade prática de sua caracterização pela ausência de evento que permita prima facie a caracterização do acidente típico, a legislação absorve o conceito de doença profissional e/ou doença do trabalho, nos incisos I e II do artigo 20 da Lei nº 8.213/91, respectivamente, então, manifesta-se por meio do desencadeamento de fatores atrelados à morbidade, sempre na dependência do fator tempo, tornando-se rara sua manifestação em contratos de trabalho de curta duração (excepcionalmente, admitida a partir da responsabilidade pelo agravamento de uma doença preexistente, reconhecido por meio do instituto da concausa), o resultado decorrerá do exercício de uma atividade peculiar, no primeiro caso, ou ainda pelas condições especiais por meio das quais o trabalho é realizado; no segundo caso, com a previsão de hipóteses de exceção que promovam o rompimento do nexo de causalidade indispensável à caraterização da responsabilidade do empregador pelo infortúnio, a exemplo da doença degenerativa de que trata a alínea “a” do § 1º do artigo 20 da referida Lei.

É importante observar a questão das comorbidades para efeito da responsabilização do empregador, especialmente o privado pelos efeitos da contaminação da COVID-19 no ambiente laboral, o que perpassa pela capacidade operacional de fornecimento “a tempo” e “ a hora”, dos equipamentos de proteção individual, o que pode representar em excludente de responsabilidade.

Destaca-se, em função dos fundamentos distintos assumidos pelo Direito do Trabalho e Previdenciário, mediante a ocorrência do acidente do trabalho. No primeiro caso ter-se-á responsabilidade complementar, limitada à ideia da culpa do empregador, critério de reparação controlada pela exigência da previsibilidade e segurança jurídica que recaia sobre a figura jurídica do empregador em uma relação de direito privado, ao tratar-se de responsabilidade de cunho contratual e, por outro lado, subsiste a responsabilidade da autarquia do INSS em relação jurídica de direito público com responsabilidade objetiva ( artigo 7º, XVII, da CF), independentemente de culpa, mas que, diante da natureza securitária, de conotação orçamentária e em razão da finitude das fontes de custeio tributária, temos a elegibilidade quantitativa (regime contributivo com equilíbrio financeiro e atuarial) relativa à correspondência do valor dos benefícios com a contribuição realizada, e qualitativa, referente à natureza dos benefícios previstos em Lei.

Devido a distinção de fundamentos destacada, haverá por parte do intérprete a necessidade de contingenciamento, ou melhor, adequação, na transposição conceitual dos acidentes do trabalho por equiparação para o campo do Direito do Trabalho comporta a absorção do conceito da concausa, tendo por efeito a determinação da responsabilidade civil do empregador no artigo 21, I, da Lei nº 8.213/91, quando não tenha sido a única causa responsável pelo infortúnio, mas tenha contribuído sensivelmente para o agravamento das condições de saúde do trabalhador, o que pode ser a saída da jurisprudência para compor os pedidos judiciais da reparação pela COVID-19, diante da contaminação dos profissionais de saúde ou atividades essenciais autorizadas ao funcionamento em época de pandemia e a inviabilidade técnica da garantia de um meio ambiente do trabalho equilibrado, contextualizado com a determinação de isolamento social e quarentena daqueles profissionais classificados como grupo de risco, o que não ocorre com o acidente de trajeto.

Pela sua inadequação conceitual com a responsabilidade subjetiva do empregador, como dito, as hipóteses de equiparação estão originalmente relacionadas com a responsabilidade objetiva do INSS, permeada por uma relação de direito público que se forma no instante em que passa a ser devido o pagamento dos benefícios previdenciários eleitos na lei de concessão, que fora retirado do sistema pela Medida Provisória 905/2019, e revogada pela Medida Provisória 955/2020.

Para a proposta de concausalidade fica o alerta do Ministro Luís Roberto Barroso no julgamento da inconstitucionalidade do artigo 29 da Medida Provisória 927/2020, no julgamento cautelar da ADIN nº 6342 (dentre outras) pelo STF, talvez pela inviabilidade técnica de definir a origem da COVID-19, de cunho ocupacional do trabalho, ou não, que se presume para os trabalhadores da linha de frente, profissionais da saúde, que no âmbito público contem como argumento a  solidariedade dos custos indenizatórios a toda a comunidade.

Segundo Vólia Bonfim Cassar (2017, p.881), citando Cavalieri Filho, “ a concausa é outra causa que, juntando-se à principal, concorre para o resultado. Ela não inicia e nem interrompe o processo causal, apenas o reforça, tal qual o rio menor que deságua em outro maior, aumentando-lhe o caudal”.

Por obviedade, a questão do “elo” de responsabilidade concausal patronal no espectro do instituto da concausa,  que infere a responsabilidade mesmo que a conduta da empresa não tormentosa na prática trabalhista, uma vez que a morbidade, por certo, pode não ser resultado do desencadeamento das condições do trabalho no plano da subjetividade argumentativa, ela decorrerá de fatores múltiplos que concorram para a doença laboral, com exclusão de responsabilidade todas as vezes que a atuação coadjuvante do empregador esteja no campo especulativo de um mero juízo de probabilidade.

É possível pegarmos o acidente de trajeto pela possibilidade de uma aplicação analógica do instituto aos efeitos da Covid-19, uma vez que além de imprevisível pelo empregador, não obstante a possibilidade da ampliação de responsabilidade pelo princípio da precaução, quanto as medidas de segurança possíveis de serem adotadas à época, pela dificuldade operacional imposta pela situação de excepcionalidade, a boa-fé objetiva e ética empresarial na tentativa de minimizar a exposição do grupo de risco, mas, de qualquer forma, juridicamente, levar-se-á em conta, como hipótese de exclusão de responsabilidade, a inevitabilidade dos efeitos, agravados exponencialmente e que ultrapassa a possibilidade de intervenção humana, ainda que imediata.

Quanto ao empregador privado, a inviabilidade técnica de definir a origem da Covid-19, de cunho ocupacional do trabalho, ou não, que se presume para os trabalhadores da linha de frente, profissionais da saúde, que no âmbito público contem com o argumento da solidaridade dos custos indenizatórios a toda a comunidade, no âmbito privado a sustentabilidade da empresa pode vir a relativizar a responsabilização pela imprevisibilidade da contingência elevada pela Covid-19 e seus efeitos na reparação trabalhista, não obstante o fato de que o serviço prestado ainda que no âmbito privado serviu ao interesse social da comunidade afetada pelos efeitos devastadores do coronavírus.

Portanto, com a finalidade de evitar determinação do nexo de causalidade com o impacto direto aos profissionais da saúde, linha de frente ao combate da Covid-19, o artigo 29 da Medida Provisória nº 927/20 passou a prever: “os casos de contaminação pelo coronavírus não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”, iniciativa, considerada inconstitucional em sede de liminar pelo STF no julgamento da ADIN nº 6342 (dentre outras).

Para o Ministro Alexandre de Morais, que inaugura a divergência diante da pretensa exclusão de médicos e enfermeiros quanto ao nexo técnico conceitualmente previdenciário, os reflexos trabalhistas no reconhecimento de doença ocupacional indenizável perante o empregador (público e privado), atuante no ramo da saúde, vai no sentido contrário da decisão tomada no RE nº 828.040, o que inclusive haveria impossibilidade técnica para aferir a origem da própria contaminação.