O salário-maternidade nas situações de alta hospital tardia de gestantes e/ou recém-nascidos: o triunfo do bom senso

Na coluna desta semana, o tema escolhido foi o salário-maternidade nas situações de alta hospital tardia de gestantes e/ou recém-nascidos. Quem vai fala sobre ele é Luciano Martinez, juiz do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região.

Ele é Professor Associado I de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da UFBA. Mestre e doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela USP. Pós-Doutor em Direito do Trabalho pela PUCRS. Mestre em Direito Privado e Econômico pela UFBA. Titular da Cadeira n. 52 da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Titular da Cadeira n. 26 da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. @lucianomartinez10

Leia íntegra do texto abaixo:

Luciana Martinez

1 . Introdução

A despeito de sua inegável importância teórica e prática, o direito fundamental à proteção à maternidade não tem merecido a devida atenção dos constitucionalistas brasileiros. Quando não completamente negligenciado nos estudos sobre direitos fundamentais, ele recebe, no mais das vezes, um tratamento incidental e extremamente superficial. Tal ocorre por manifesto esquecimento de que a “maternidade” é a protagonista da perenização dos povos. O oferecimento de proteção à mulher gestante, portanto, antes de ser ato de amparo ao gênero feminino, é a mais significativa forma de assegurar a preservação da própria espécie.

A primazia do direito à vida, assim, inspira a proteção à maternidade, pois não há vida sem que se amparem as matrizes nos processos reprodutivos humanos. A higidez dos embriões/futuros cidadãos, aliás, depende essencialmente dos cuidados que se podem oferecer às mulheres nas etapas gestacionais, no parto e no pós-parto. Os cuidados com as mães garantem, portanto, a viabilidade dos filhos.

  • O direito fundamental à proteção à maternidade e à convivência familiar.

Para que tudo de melhor ocorra com a maternidade, é indispensável que os cuidados sejam oferecidos em todos os mais significativos momentos da vida da mulher, entre os quais se incluem os instantes fruídos no seio da família, no âmbito do trabalho e na relação com a sociedade. Assim, cônscio de que os indivíduos passam 1/3 (um terço) de suas vidas em ambientes laborais ou em espaços sociais conexos, o legislador brasileiro consagrou a “proteção à maternidade” como um direito social no art. 6º ao preceituar:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Garantiu-se, ademais, no art. 7º do texto fundamental, a proteção do mercado de trabalho da mulher (inciso XX); a “licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias” (inciso XVIII), além de proteção previdenciária e assistencial (conforme disposto no art. 201, II, e no art. 203, I, da Carta), observada previsão constitucional acerca de políticas específicas para a aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil (vide § 1º, I, do art. 227 do texto fundamental).

É bom atentar para o fato de que os direitos fundamentais – quaisquer que sejam – trazem consigo uma ordem dirigida ao Estado no sentido de que a este incumbe a obrigação permanente de sua concretização e realização. Para que tal ocorra, emergirá o dever geral de efetivação, atribuído ao ente estatal para que zele, inclusive preventivamente, pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos, não apenas contra os comportamentos dos próprios Poderes Públicos, mas também contra agressões que provenham de terceiros.

Nesse particular, cabe a lembrança da existência de um princípio de “proibição de défice”, que obriga o Estado a assegurar um nível mínimo e adequado de proteção aos direitos fundamentais e a assumir a responsabilidade pelas omissões legislativas que não assegurem o cumprimento dessa imposição genérica. A insuficiente realização dos deveres de proteção do Estado em favor da maternidade, aliás, além de caracterizar violações ao referido princípio de proteção, constitui flagrante ato antijurídico.

Com fundamento nesse dever geral de efetivação, o Supremo Tribunal Federal foi provocado pelo partido político “Solidariedade”, com representação no Congresso Nacional, a dar ao § 1º do artigo 392 da CLT (Decreto-Lei n. 5.452/1943) e ao artigo 71 da Lei n. 8.213/1991 — esse último com redação dada pela Lei n. 10.710/2003 — interpretação conforme a Constituição de modo a se considerar como marco inicial da licença-maternidade a alta hospitalar da mãe e/ou do recém-nascido, o que ocorresse por último.

  • A interpretação conforme a Constituição na determinação do marco inicial da contagem de licença-maternidade e de salário-maternidade nos casos de internação e de alta hospitalar tardia para mães e recém-nascidos.

A petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade (depois recebida por fungilibilidade como Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), que foi tombada com o número 6327-DF, chamou a atenção para o fato de que o objetivo primordial do Constituinte originário, ao reportar-se por diversas vezes à indispensabilidade da proteção à maternidade e à infância, era garantir que essas etapas fossem plenamente vividas pela mãe e pelo novo integrante da família. Acentuou-se ali que a literatura médica demonstra amiúde que as crianças, nos primeiros anos de vida, experimentam taxas rápidas de desenvolvimento do cérebro e do sistema nervoso por conta dos laços sociais estabelecidos com os seus cuidadores, reafirmando, assim, a pertinência da proteção jurídica da relação entre mãe e bebê.

Destacou-se na postulação inicial que após o parto não são raros os casos que ensejam internação médico-hospitalar subsequente da mãe e/ou da criança, que, em hipóteses extremas, pode perdurar meses. Em tais circunstâncias, considerando que o período de licença se inicia antes da data do parto — ou, quando muito, a partir dele —, restava evidente o prejuízo para o desenvolvimento do convívio afetivo entre mãe e criança para além do contexto hospitalar.

Defendeu-se ali que o período de licença-maternidade deveria ter início tão somente com a alta hospitalar da mãe e/ou do recém-nascido, o que ocorresse por último, interpretação essa que, além de abranger possíveis imprevistos na recuperação dos envolvidos, garantiria que a proteção prevista nos artigos 6º, 201, II, 203, I, e 227, todos da Constituição Federal, fosse devidamente observada.

E assim ocorreu.

Salientando que as preocupações concernentes à alta hospitalar responsável, ao estado puerperal, à amamentação, ao desenvolvimento infantil, à criação de vínculos afetivos, evidenciando a proteção qualificada da primeira infância e, em especial, do período gestacional e pós-natal, sempre foram reconhecidas pela Suprema Corte, cm registro expresso ao julgamento do HC coletivo das mães e gestantes presas (HC 143641, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 09-10-2018), o Ministro Relator, Edson Fachin destacou a especial importância da discussão em relação aos bebês que, após um período de internação, obtêm alta, demandando cuidados especiais em relação a sua imunidade e desenvolvimento.

Com sensibilidade, o Ministro relator evidenciou, então, que a alta é, sem dúvidas, o momento aguardado e celebrado e que é nesta data, afinal, que se inaugura o período abrangido pela proteção constitucional à maternidade, à infância e à convivência familiar. Segundo a  decisão, “o período de internação neonatal guarda as angústias e limitações inerentes ao ambiente hospitalar e à fragilidade das crianças” e que, exatamente por isso, “é na ida para casa que os bebês efetivamente demandarão o cuidado e atenção integral de seus pais, e especialmente da mãe, que vivencia também um momento sensível como é naturalmente, e em alguns casos agravado, o período puerperal”

Por conta disso, e com base em uma série de outros argumentos adicionais, o Plenário do STF conferiu interpretação conforme à Constituição ao artigo 392, §1º, da CLT, assim como ao artigo 71 da Lei 8.213/1991 e, por arrastamento, ao artigo 93 do seu Regulamento  (Decreto 3.048/1999), e assim assentou a necessidade de prorrogar o benefício, bem como considerar como termo inicial da licença-maternidade e do respectivo salário-maternidade a alta hospitalar do recém-nascido e/ou de sua mãe, o que ocorrer por último, quando o período de internação exceder as duas semanas previstas no art. 392, §2º, da CLT, e no art. 93, §3º, do Decreto 3.048/1999.

  • A sistematização prática. A exeqüibilidade do direito.

Para sistematizar o procedimento, a Diretoria de Benefícios do INSS e outros órgãos correlatos, publicaram a PORTARIA CONJUNTA Nº 28, DE 19 DE MARÇO DE 2021, por meio da qual deixaram claras algumas particularidades que ora são destacadas.

A primeira é o canal de requerimento. A segurada, exceto a segurada empregada, deverá requerer a prorrogação pela Central 135, por meio do protocolo do serviço de “solicitar prorrogação de salário-maternidade”. A segurada empregada fará o requerimento de prorrogação do Salário-Maternidade diretamente ao empregador.

A segunda é a necessidade de reiteração do pedido de prorrogação a cada 30 ( trinta) dias de prorrogação da internação. E novo pedido somente poderá ser feito após a conclusão da análise do pedido anterior. Atente-se que durante o período de internação a segurada receberá salário-maternidade, mas a contagem do prazo de 120 dias somente terá início a partir da alta hospitalar.

A terceira e última importante consideração diz respeito às recidivas de internação hospitalar. Se depois da alta houver novas internações em virtude de complicações decorrentes do parto, caberá à segurada solicitar novas prorrogações até a integralização do período de convivência de 120 dias. O benefício continuará sendo pago durante as novas internações, mas o prazo de 120 dias será suspenso e recomeçará a correr somente após as novas altas, quantas vezes forem necessárias novas internações relacionadas ao parto.

  • Conclusão.

A “maternidade” é, como se viu, uma experiência que atinge todos os integrantes do grupo familiar. Todos “engravidam” juntos; todos, afinal, se tornam sensibilizados diante dos cuidados que devem ser oferecidos ao novo integrante da família. Exatamente por essa razão, o texto constitucional, ao se referir sobre os riscos que merecem  a proteção do Estado, informa, no seu art. 201, II, acerca de uma “proteção à maternidade, especialmente à gestante”, e não sobre uma proteção exclusivamente ao nascituro ou a um amparo unicamente à gestante. Diz-se ali sobre uma proteção à maternidade, que, em rigor, abarca todos os que vivem a sua experiência. É o que se espera ver concretizado a cada dia, em cada ação particular ou estatal.