Restrições aos componentes do cigarro e ao uso de mentol na fórmula

Em 2012, a Diretoria Colegiada da ANVISA emitiu a Resolução número 14, proibindo a importação, a produção e a comercialização de cigarros que contivessem, em sua composição, substâncias ou compostos que não fossem tabaco e água. A clara intenção da agência era evitar a produção de cigarros com açúcares, edulcorantes, aromatizantes, flavorizantes e ameliorantes, que adicionam “sabor” cigarro, amenizando a aspereza da fumaça produzida pelo tabaco.

Ainda que a comercialização de cigarros com sabores não representasse mais de 2% de todo o tabaco comercializado no país (98% do cigarro comercializado é do tipo american blend, misturando-se à composição apenas diferentes tipos de fumo, como o Burley, Oriental ou Virgínia), eles possuem uma importância mercadológica para as empresas de produtos fumígenos, na medida em que servem de atração para, principalmente, jovens, que não são fumantes e que se afastam do cigarro justamente pelo cheiro e pelo gosto da fumaça, que conseguem ser disfarçados com a adição desses produtos.

A medida tomada pela ANVISA, portanto, possui claríssima conotação protetiva dos cidadãos não fumantes – potenciais fumantes – ao se proibir a utilização, na formulação dos cigarros, de substâncias estranhas ao tabaco e que servem justamente para torná-lo mais atrativo. A questão restou judicializada e atualmente se encontra pendente de julgamento final no Supremo Tribunal Federal, conforme se detalha adiante.

O Supremo Tribunal Federal enfrentou, na ADI 4874, proposta pela Confederação Nacional da Indústria, a questão da imposição de limites às normas restritivas de liberdades individuais, especialmente no tocante à alegada carência de competência da agência para limitar – ou proibir – a utilização de determinados insumos em produtos fumígenos.

Pretendeu-se o reconhecimento de que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) não detinha competência para editar a RDC n. 14, de 2012, que fixou limites máximos de alcatrão, nicotina e monóxidos de carbono nos cigarros, bem como proibiu o uso de aditivos com sabor, para além do reconhecimento de que, igualmente, não possui competência material para tutelar pretensos interesses dos cidadãos. A desproporcionalidade da medida da agência esteve presente nas alegações formuladas na inicial da ADI:

As severas restrições à liberdade de empresa evidenciam ponderação desproporcional e irrazoável, em flagrante violação aos arts. 1º, caput, e 5º, LIV, CRFB.

A medida é inadequada para atingir o fim pretendido, porque os estudos comprovam que os riscos à saúde associados ao consumo de cigarros tipo American Blend não são maiores do que aqueles associados ao consumo de cigarros que são produzidos sem aditivos, como o Straight Virginia. Igualmente, os percentuais de fumantes em países com predominância de American Blend são muito parecidos com países em que prevalecem os cigarros sem aditivos, como o Straight Virginia, não se podendo afirmar que a ausência de aditivos diminua a iniciação ao fumo.
Aliás, há boas razões para sustentar que haja até aumento do consumo. De fato, pode-se falar em uma tendência de que os possíveis consumidores desses produtos (novos e antigos) migrem para o mercado ilegal, que manterá o produto da preferência dos consumidores, sem controle sanitário, a preços bem mais atrativos, os quais, aliás, fizeram com que os cigarros ilegais detenham 30% do mercado de fumígenos no Brasil. Isso gera efeitos diversos aos desejados e agrava o não recolhimento de tributos incidentes. Confira-se, a respeito, estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas que concluiu que “o estrangulamento do mercado formal de cigarros não diminuirá o consumo, apenas tornará o produto do contrabando mais atraente”.

Vale, destarte, a seguinte advertência: “Lembre-se que os produtos obtidos no mercado ilegal não se sujeitam à regulação estatal ou a qualquer controle de qualidade, expondo os consumidores a riscos ainda mais elevados, além de trazerem em si outros efeitos sócio-ecônomicos nocivos, como a perda de receita tributária e o aumento da criminalidade em geral”.

A regulação é, ainda, desnecessária, pois há alternativas menos gravosas à livre iniciativa que o banimento total dos aditivos listados. Exemplos disso são: (i) o aumento da fiscalização das leis vigentes que já proíbem a venda de produtos derivados do tabaco a menores de idade, além do combate efetivo ao mercado ilegal de cigarros, que incrementa descontrolada e indiscriminadamente o acesso ao produto; e (ii) campanhas educativas promovidas pelo Estado. A RDC nº 14/2012 vai longe demais, revelando-se excessiva, ao pretender banir substâncias há muito tempo utilizadas e que não apresentam risco inerente. A proibição dos aditivos é, por fim, desproporcional em sentido estrito. Os prejuízos à livre iniciativa, à agricultura familiar, e a diversos setores econômicos serão irreversíveis e maiores do que os incertos benefícios que possam advir da restrição imposta.

Isso sem falar dos efeitos dessas restrições no mercado ilegal. Como se mencionou, há o risco real e iminente de que fumantes de cigarros com aditivos migrem para o mercado ilegal na busca pelos produtos de sua preferência. Até porque, vale lembrar, os cigarros ilegais continuarão a ser produzidos com todos os insumos que a Agência pretende banir.

Neste caso, especificamente, os interesses advogados na ADI, por óbvio, são exclusivamente os interesses das companhias de produtos fumígenos e, por tais motivos, os argumentos estão ligados, quase exclusivamente, à livre iniciativa.

Todavia, de fundo, o móvel da medida da Anvisa, segundo expressamente justificado pela Advocacia-Geral da União, foi o de “proteger a população, evitando antecipadamente a ampliação de danos à saúde” (defesa da AGU na ADI 4874), o que estaria em perfeita consonância com a Lei n. 9.782/1999, marcadamente em razão da atribuição daquela agência para controlar e fiscalizar a produção, a distribuição e a comercialização de produtos e serviços relacionados à saúde.

A Procuradoria-Geral da República, na mesma esteira, defendeu a medida reguladora de restrição à livre iniciativa – ou restrição à liberdade dos cidadãos? – sustentando que a ANVISA buscou proteger os possíveis consumidores de cigarros dos atores do mercado que buscam apenas auferir lucros e expandir sua área de influência comercial.

Nota-se, portanto, que a medida possui consequências que possibilitam abordagens partindo de pontos de mirada distintos: de um lado, as empresas enxergam a medida a partir da restrição da livre iniciativa. De outro, o Estado maneja o instrumento regulatório no intuito de tutelar os cidadãos contra eles próprios, na medida em que interdita a utilização de substâncias que, ao menos em tese, poderiam atrair mais usuários de produtos fumígenos e causar mais dependência.

Declaradamente, a autoridade reguladora visou dificultar a entrada de produtos fumígenos no mercado para adolescentes e jovens, interditando a utilização de mentol, que ameniza a aspereza causada pela fumaça.

Essa ADI, especificamente, pelos interesses envolvidos, rendeu belos pareceres jurídicos, como dos Professores J. J. Gomes Canotilho, Sepúlveda Pertence, Luís Roberto Barroso e Virgílio Afonso da Silva, que trilham o caminho da violação à liberdade de escolha dos cidadãos ao se padronizar os produtos fumígenos em suas composições. Eles alegam que, assim, todos os produtos serão iguais e que o Estado estaria escolhendo pelo seu cidadão consumidor, o que redundaria em violação à livre concorrência.

Sustentaram, ademais, desvio de finalidade regulatória, sob o argumento de que, a pretexto de conformar, a autoridade normativa da agência pretendeu, em verdade, o banimento de um produto lícito do mercado brasileiro. Adiciona-se a esses argumentos o de que a Administração Pública, ao restringir uma liberdade ou um direito, possui o ônus da prova, vale dizer, deve demonstrar empiricamente que os móveis deflagradores da conformação restritiva da liberdade possuem lastro científico que justifiquem a restrição que, ainda assim, deve ser proporcional.

Especialmente Virgílio Afonso da Silva (2002), em seu parecer, enfrenta a questão do ponto de vista da proteção dos cidadãos contra os produtos fumígenos, em especial, os adolescentes. De partida, o parecerista diz refutar a tese de que a medida regulatória é revestida de determinismo moral, paternalista ou até mesmo perfeccionista. Afasta, também, o argumento da planificação ou padronização do produto, trazendo exemplos do vinho, do café e do chá que, não obstante sendo os mesmos produtos, permanecem com diferenças substanciais a depender da marca, o que acaba gerando a preferência do consumidor por uma ou outra. Por fim, admite que, se existe uma liberdade prima facie à indústria de produtos fumígenos, essa liberdade é exatamente isso: apenas prima facie.

A liberdade genética pode ser matizada, quando necessário, diante de outras liberdades ou direitos fundamentais, valendo-se, para tanto, da proporcionalidade, comprovadamente já tão utilizada pelo Supremo Tribunal Federal. Enfrenta um a um dos filtros de controle da proporcionalidade, demonstrando que a norma é proporcional e, portanto, não chega a ser violação de liberdade, mas mera restrição que, inclusive, segundo sustenta, está em conformidade com a possibilidade normativa das agências.

Neste particular, a Relatora, Ministra Rosa Weber, concedeu liminar suspendendo os efeitos dos dispositivos da Resolução da Diretoria Colegiada n. 14 da Anvisa até o julgamento final da ação, que seria julgada em 25 de agosto de 2014, mas teve pedido de adiamento pela própria relatora e, por hora, não se sabe a posição final da Corte em relação às questões ali debatidas.