Restrições a Direitos Individuais e o Supremo Tribunal Federal

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (MENDES, s/d) tem como primeira referência ao controle formulado por meio da proporcionalidade o RE 18.331. Neste recurso, pela primeira vez, a proporcionalidade foi utilizada como mecanismo de imposição de limites à possibilidade (dever) de conformação e fixação de balizas pelo legislador às liberdades e aos direitos de seus cidadãos:

O poder de taxar não pode chegar à desmedida do poder de destruir, uma vez que aquele somente pode ser exercido dentro dos limites que o tornem compatível com a liberdade de trabalho, de comércio e da indústria e com o direito de propriedade. É um poder cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do ‘détournement de pouvoir’. (STF, RE nº 18.331, Relator Ministro Orozimbo Nonato, RF 145 (1953), p. 164)

Pouco mais tarde, em 1968, o mesmo Supremo julgou inconstitucional o artigo 48 do Decreto-Lei n. 314, de 1967, que interditava que qualquer pessoa acusada de prática de crime contra a segurança nacional pudesse exercer qualquer atividade profissional, fosse ela pública ou privada.

Na decisão tomada no HC 45.232 (Relator: Ministro Themístocles Cavalcanti, RTJ 44, p. 322), cujo relator foi o então Ministro Themístocles Brandão Cavalcanti, aplicou-se uma cláusula geral prevista no artigo 150, § 35, da Constituição de 1967, para reconhecer a proporcionalidade como dever imposto ao legislador ao manejar suas funções, especialmente quando tocasse nas liberdades e nos direitos fundamentais das pessoas.

Comentando especificamente este julgado, Mendes, Coelho e Branco (2002, p. 259) destacam que “embora a questão se restringisse à liberdade de exercício profissional, parece certo que o juízo desenvolvido mostra-se aplicável em relação a qualquer providência legislativa destinada a restringir direitos”.

Outro importantíssimo caso que teve decisão do Supremo Tribunal, desta feita em 1976, diz com o enfrentamento da constitucionalidade ou não da restrição de liberdade imposta pela Lei Complementar n. 5, de 1970, especialmente seu artigo 1º, inciso I, alínea “n”. Esses dispositivos tornavam inelegível o cidadão que respondesse processo criminal, ainda que sem o trânsito em julgado.

O Tribunal Superior Eleitoral de então, por meio do voto condutor do relator, Ministro Leitão de Abreu, julgou a norma inconstitucional por incompatibilidade com a presunção de inocência. A questão foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal que, por maioria dos votos, reformulou a decisão, admitindo a restrição imposta aos cidadãos, ainda que ausente decisão judicial definitiva tratando da culpabilidade do acusado.

A corrente vencedora, neste caso, pode ser sintetizada por trecho do voto do Ministro Moreira Alves, que sustentou que “se é indisputável que a presunção de inocência não impede o cerceamento do bem maior, que é a liberdade, como pretender-se que possa cercear a atuação do legislador como no terreno das inelegibilidades?” (RE, 86.297, Relator: Ministro Thompson Flores, RTJ 79, p. 671).

Questão similar, mas bastante mais recente, também chegou ao Supremo. Tratava-se dos questionamentos formulados pelas ADCs 29 e 30 e ADI 4578, envolvendo a constitucionalidade ou não, por desbordamento da proporcionalidade, das restrições impostas pela Lei Complementar n. 135/2010 (Lei Ficha Limpa), que modificou a Lei Complementar n. 64/1990.

A ADI 4578, ajuizada pela Confederação Nacional das Profissões Liberais, questionava a regra contida na lei que tornava inelegível por oito anos quem tivesse sido excluído do exercício profissional por decisão do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional.

Não obstante ela ter sido julgada improcedente por maioria de votos, é relevante, para esta tese, o voto do Relator, Ministro Luiz Fux, que converteu-se em verdadeira síntese do cheque de proporcionalidade nas normas restritivas de liberdades individuais realizadas pelo legislador no exercício de sua função de conformar. Por tal relevância, transcreve-se:

A segunda razão, por seu turno, é a inexistência de arbitrariedade na restrição legislativa. Como é cediço, as restrições legais aos direitos fundamentais sujeitam-se aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e, em especial, àquilo que, em sede doutrinária, o Min. GILMAR MENDES (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6. edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 239 e seguintes) denomina de limites dos limites (Schranken-Schranken), que dizem com a preservação do núcleo essencial do direito.

Partindo-se da premissa teórica formulada por HUMBERTO ÁVILA (Op. cit., 2005, p. 102 e seguintes), que distingue razoabilidade e proporcionalidade, observem-se as hipóteses de inexigibilidade introduzidas pela Lei Complementar nº 135/10 à luz da chamada razoabilidade-equivalência, traduzida na equivalência entre medida adotada e critério que a dimensiona: são hipóteses em que se preveem condutas ou fatos que, indiscutivelmente, possuem altíssima carga de reprovabilidade social, porque violadores da moralidade ou reveladores de improbidade, de abuso de poder econômico ou de poder político.

[…]

[…] também se vislumbra proporcionalidade nas mencionadas hipóteses de inelegibilidade – todas passam no conhecido triplo teste de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Confira-se. Do ponto de vista da adequação, não haveria maiores dificuldades em afirmar que as inelegibilidades são aptas à consecução dos fins consagrados nos princípios elencados no art. 14, § 9º, da Constituição, haja vista o seu alto grau moralizador. Relativamente à necessidade – que, como se sabe, demanda que a restrição aos direitos fundamentais seja a menos gravosa possível –, atente-se para o fato de que o legislador complementar foi cuidadoso ao prever requisitos qualificados de inelegibilidade, pois exigiu, para a inelegibilidade decorrente de condenações judiciais recorríveis, que a decisão tenha sido proferida por órgão colegiado, afastado a possibilidade de sentença proferida por juiz singular tornar o cidadão inelegível. […] Resta, ainda, a apreciação da Lei Complementar nº 135/10 à luz do subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, e, mais uma vez, a lei responde positivamente ao teste. Com efeito, o sacrifício exigido à liberdade individual de candidatar-se a cargo público eletivo não supera os benefícios socialmente desejados em termos de moralidade e probidade para o exercício de cargos públicos, sobretudo porque ainda são rigorosos os requisitos para que se reconheça a inelegibilidade. (ADC 29/ADC 30/ADC4578, Relator Min. Luiz Fux)

E, mais adiante, efetuou ressalva em um ponto específico:

A disciplina legal ora em exame, ao antecipar a inelegibilidade para o momento anterior ao trânsito em julgado, torna claramente exagerada a sua extensão por oito anos após a condenação. É algo que não ocorre nem mesmo na legislação penal, que expressamente admite a denominada detração, computando-se, na pena privativa de liberdade, o tempo de prisão provisória. Recomendável, portanto, que o cômputo do prazo legal da inelegibilidade também seja antecipado, de modo a guardar coerência com os propósitos do legislador e, ao mesmo tempo, atender ao postulado constitucional da proporcionalidade. (ADC 29/ADC 30/ADC 4578, Relator Min. Luiz Fux )

Na essência, mesmo passados mais de trinta e cinco anos do enfrentamento de caso similar pelo então Ministro Moreira Alves, o Supremo Tribunal Federal voltou a valer-se do filtro da proporcionalidade para examinar a restrição imposta à liberdade de candidatar-se, concluindo de forma congruente ao decidido pela primeira vez, demonstrando sedimentação da técnica pela corte.

Também de lavra do Ministro Moreira Alves, o relatório da representação 1.077, de 1984, no qual se questionava a constitucionalidade do artigo 118 da Lei Estadual n. 383, de 1980, do Rio de Janeiro, que fixou a taxa judiciária no valor de 2% sobre o valor pedido na ação. Extrai-se da decisão que “o certo é que não pode taxa dessa natureza ultrapassar uma equivalência razoável entre o custo real dos serviços e o montante a que pode ser compelido o contribuinte a pagar” (Rp. 1.077, Relator: Min. Moreira Alves, RTJ 112:34 (58-59)).

Já em 1993, o Supremo Tribunal Federal voltou a efetuar controle de constitucionalidade, valendo-se, como parâmetro, da proporcionalidade, quando do julgamento da ADI 855, cujo relator era o Ministro Sepúlveda Pertence.

Naquela ação discutia-se a proporcionalidade das disposições constantes na Lei 10.248, de 1993, do estado do Paraná, que regulava o transporte e a distribuição de gás liquefeito de petróleo. Do voto do relator emerge que a norma infringiu a proporcionalidade e a razoabilidade quando impôs aos distribuidores de gás medidas onerosas e de utilidades duvidosas. Sustentou Sepúlveda Pertence que as informações trazidas pelo INMETRO, naquele caso, serviam para demonstrar a inadequação e a desproporcionalidade da medida, bem como a desproporção entre o ônus imposto aos particulares e os fins perseguidos.

Recentemente, aquela corte vem aperfeiçoando e aprofundando os mecanismos limitadores de controle de normas e restritivas de liberdades e direitos individuais. Isso pôde ser notado no pedido de suspensão de segurança formulado pela União contra decisão do Tribunal Regional Federal, que declarou a ilegitimidade da norma regulamentadora que limitava a quantidade de cigarros em caço ou pacote.

Neste específico (SS 1.320, DJ, 14/4/1999, item 524), o Ministro Relator, Celso de Mello, destacou que “já se destacou que transgride o princípio do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV) – analisado este na perspectiva de sua projeção material (substantive due proces of law) – a regra estatal que veicula, em seu conteúdo, prescrição normativa qualificada pela nota da irrazoabilidade”.

Segue o relator expondo:

A validade das manifestações do Estado, analisadas estas em função de seu conteúdo intrínseco – especialmente naquelas hipóteses de imposições restritivas incidentes sobre determinados valores básicos – passa a depender, essencialmente, da observância de determinados requisitos que pressupõem não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para a consecução dos objetivos pretendidos e a necessidade de sua utilização, de tal modo que um juízo definitivo sobre a proporcionalidade ou razoabilidade da medida há de resultar de rigorosa ponderação entre o significado da intervenção para o atingimento e os objetivos perseguidos pelo legislador. […] Cumpre enfatizar, neste ponto, que a cláusula do devido processo legal – objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição, e que traduz um dos fundamentos dogmáticos do princípio da proporcionalidade – deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público (procedural due process of law), que atua como decisivo obstáculo à edição de atos normativos revestidos de conteúdo arbitrário ou irrazoável. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação ou de regulamentação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades normativas do Estado, que este não dispõe de competência para atuar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal. (SS 1.320, DJ de 14/4/1999, item 524)

 

 

O voto do Ministro Celso de Mello neste pedido de suspensão de segurança apresenta-se como verdadeiro magistério das cláusulas limitadoras da atividade normativa limitadora de liberdades e direitos individuais, apontando a proporcionalidade e a razoabilidade como parâmetros seguros a esse cheque. Destacou-se, inclusive, que o exercício desta atividade normativa discricionária pelo legislador deve ser balizada pela harmonia com o interesse público, sob pena de incorrer-se em desvio do poder legislativo.

A análise desta decisão demonstra a necessidade de, em cada caso particular, ao se analisar o acerto ou não da medida restritiva da liberdade ou do direito individual, examinar os chamados fatos e prognoses legislativos, inclusive em sede judicial. A adequação da medida com o fim que pretendia alcançar impõe a revisão de todos os dados empíricos e prognósticos adotados pelo órgão responsável pela edição do ato normativo regulamentador limitante (MENDES, 1998, p. 453).

O parâmetro da proporcionalidade é também utilizado pelo Supremo como instrumento de solução quando diante de colisão entre direitos fundamentais, de modo que se restringe a liberdade de um dos envolvidos na relação.

Isso pôde ser observado quando o Ministro Sepúlveda Pertence, no HC 76.060-4, entendeu que não é razoável nem proporcional compelir fisicamente o pai pressuposto a fornecer material genético ao exame de DNA conquanto este é prova que lhe serviria para afastar a presunção que contra ele recai. Neste caso, utilizou-se da proporcionalidade como “regra de ponderação” para se buscar equalizar os interesses conflitantes.

Outro julgamento em que o Supremo Tribunal Federal lançou mão da proporcionalidade como mecanismo de controle das limitações às liberdades individuais foi o do julgamento da ADI 2.404 de 2001, no qual se questionava a constitucionalidade do artigo 254 da Lei nº 8.069/1990 (ECA), especialmente no que se refere à vinculação das televisões e rádios em transmitir programações adequadas às classificações etárias nos horários previamente estipulados.

Neste julgamento, os Ministros Dias Tofolli, então relator, bem como os Ministros Luiz Fux, Carmen Lúcia e Carlos Ayres Britto reconheceram a classificação de horários como uma censura prévia, que fere a liberdade de informação em favor de uma “moral pública e familiar”. A questão foi igualmente analisada sob o prisma da proporcionalidade e entendeu-se que a medida desbordava a necessidade, na medida em que os pais ou responsáveis dispunham de outros mecanismos tecnológicos capazes de filtrar e impor aos seus filhos limites de acesso a programas violentos ou pornográficos. Em síntese, entendeu o Supremo que a restrição era irrazoável e desbordava os limites impostos ao Estado sobre a ingerência na educação de crianças e adolescentes, ferindo a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e a liberdade de informação.

No início desta tese, outra situação citada como exemplo de restrições à liberdade individual em proveito do próprio sujeito sob o qual seria imposta a limitação foi a da imposição do uso de cinto de segurança. Se, após a edição do Código de Trânsito Brasileiro, a celeuma que envolvia o assunto tornou-se pacífica, antes havia várias normas estaduais, como a Lei n. 10.521/1995, do estado do Rio Grande do Sul, que não apenas obrigava os motoristas e passageiros de veículos automotores a utilizarem cinto de segurança, como também que crianças menores de dez anos fossem transportadas exclusivamente nos bancos traseiros.

Discutia-se, igualmente, à época, se com base na Lei n. 5.108/1966 e no Decreto n. 62.127/1968, que redundaram na Resolução 720 do CONTRAN, era possível a imposição de utilização de cinto de segurança mesmo que ela – restrição de liberdade – tenha sido imposta não por lei, mas pelo próprio Conselho Nacional de Trânsito. Tanto essa resolução quanto as normas estaduais sofreram muitos questionamentos nos Tribunais ordinários, até que a questão foi resolvida pelo Supremo Tribunal Federal por meio da ADI 2.960, cujo relator foi o Ministro Dias Tofolli.

Apesar de a decisão ter sido tomada por questões formais, vez que entendeu o Supremo Tribunal que a norma estadual invadiu a esfera de competência da União, violando o parágrafo único do artigo 22 da Constituição Federal – assim como havia sido decidido anteriormente na ADI 874, que declarou inconstitucional a Lei 6.457/1993 da Bahia, que determinava a instalação de cintos de segurança nos veículos de transporte público de passageiros –, razão usada no voto do relator para decidir que não deve prevalecer a tese do estado do Rio Grande do Sul de que a norma visava a defesa da saúde dos condutores e passageiros, assim como protegia as crianças dos riscos do transporte em veículos automotores nos bancos dianteiros.

De toda forma, quando do julgamento, já estava em vigor o Código de Trânsito Brasileiro que, em seu artigo 65, impôs o uso obrigatório do cinto de segurança, bem como no artigo 64 fixou a idade mínima para crianças trafegarem nos bancos dianteiros. Neste específico, extrai-se do voto que a Lei publicada pela União, o Código de Trânsito Brasileiro, poderia impor essa restrição, embora as normas infralegais e as leis estaduais não pudessem.

Mais recentemente ainda, o Supremo Tribunal Federal enfrentou, na ADI 4874, proposta pela Confederação Nacional da Indústria, a questão da imposição de limites às normas restritivas de liberdades individuais, especialmente no tocante à alegada carência de competência da agência para limitar – ou proibir – a utilização de determinados insumos em produtos fumígenos.

Pretendeu-se o reconhecimento de que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) não detinha competência para editar a RDC n. 14, de 2012, que fixou limites máximos de alcatrão, nicotina e monóxidos de carbono nos cigarros, bem como proibiu o uso de aditivos com sabor, para além do reconhecimento de que, igualmente, não possui competência material para tutelar pretensos interesses dos cidadãos. A desproporcionalidade da medida da agência esteve presente nas alegações formuladas na inicial da ADI:

As severas restrições à liberdade de empresa evidenciam ponderação desproporcional e irrazoável, em flagrante violação aos arts. 1º, caput, e 5º, LIV, CRFB.

A medida é inadequada para atingir o fim pretendido, porque os estudos comprovam que os riscos à saúde associados ao consumo de cigarros tipo American Blend não são maiores do que aqueles associados ao consumo de cigarros que são produzidos sem aditivos, como o Straight Virginia. Igualmente, os percentuais de fumantes em países com predominância de American Blend são muito parecidos com países em que prevalecem os cigarros sem aditivos, como o Straight Virginia, não se podendo afirmar que a ausência de aditivos diminua a iniciação ao fumo.

Aliás, há boas razões para sustentar que haja até aumento do consumo. De fato, pode-se falar em uma tendência de que os possíveis consumidores desses produtos (novos e antigos) migrem para o mercado ilegal, que manterá o produto da preferência dos consumidores, sem controle sanitário, a preços bem mais atrativos, os quais, aliás, fizeram com que os cigarros ilegais detenham 30% do mercado de fumígenos no Brasil. Isso gera efeitos diversos aos desejados e agrava o não recolhimento de tributos incidentes. Confira-se, a respeito, estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas que concluiu que “o estrangulamento do mercado formal de cigarros não diminuirá o consumo, apenas tornará o produto do contrabando mais atraente”.

Vale, destarte, a seguinte advertência: “Lembre-se que os produtos obtidos no mercado ilegal não se sujeitam à regulação estatal ou a qualquer controle de qualidade, expondo os consumidores a riscos ainda mais elevados, além de trazerem em si outros efeitos sócio-ecônomicos nocivos, como a perda de receita tributária e o aumento da criminalidade em geral”

A regulação é, ainda, desnecessária, pois há alternativas menos gravosas à livre iniciativa que o banimento total dos aditivos listados. Exemplos disso são: (i) o aumento da fiscalização das leis vigentes que já proíbem a venda de produtos derivados do tabaco a menores de idade, além do combate efetivo ao mercado ilegal de cigarros, que incrementa descontrolada e indiscriminadamente o acesso ao produto; e (ii) campanhas educativas promovidas pelo Estado. A RDC nº 14/2012 vai longe demais, revelando-se excessiva, ao pretender banir substâncias há muito tempo utilizadas e que não apresentam risco inerente. A proibição dos aditivos é, por fim, desproporcional em sentido estrito. Os prejuízos à livre iniciativa, à agricultura familiar, e a diversos setores econômicos serão irreversíveis e maiores do que os incertos benefícios que possam advir da restrição imposta.

Isso sem falar dos efeitos dessas restrições no mercado ilegal. Como se mencionou, há o risco real e iminente de que fumantes de cigarros com aditivos migrem para o mercado ilegal na busca pelos produtos de sua preferência. Até porque, vale lembrar, os cigarros ilegais continuarão a ser produzidos com todos os insumos que a Agência pretende banir.

Neste caso, especificamente, os interesses advogados na ADI, por óbvio, são exclusivamente os interesses das companhias de produtos fumígenos e, por tais motivos, os argumentos estão ligados, quase exclusivamente, à livre iniciativa.

Todavia, de fundo, o móvel da medida da Anvisa, segundo expressamente justificado pela Advocacia Geral da União, foi o de “proteger a população, evitando antecipadamente a ampliação de danos à saúde” (defesa da AGU na ADI 4874), o que estaria em perfeita consonância com a Lei n. 9.782/1999, marcadamente em razão da atribuição daquela agência para controlar e fiscalizar a produção, a distribuição e a comercialização de produtos e serviços relacionados à saúde.

A Procuradoria-Geral da República, na mesma esteira, defendeu a medida reguladora de restrição à livre iniciativa – ou restrição à liberdade dos cidadãos? – sustentando que a ANVISA buscou proteger os possíveis consumidores de cigarros dos atores do mercado que buscam apenas auferir lucros e expandir sua área de influência comercial.

Nota-se, portanto, que a medida possui consequências que possibilitam abordagens partindo de pontos de mirada distintos: de um lado, as empresas enxergam a medida a partir da restrição da livre iniciativa. De outro, o Estado maneja o instrumento regulatório no intuito de tutelar os cidadãos contra eles próprios, na medida em que interdita a utilização de substâncias que, ao menos em tese, poderiam atrair mais usuários de produtos fumígenos e causar mais dependência.

Declaradamente, a autoridade reguladora visou dificultar a entrada de produtos fumígenos no mercado para adolescentes e jovens, interditando a utilização de mentol, que ameniza a aspereza causada pela fumaça.

Essa ADI, especificamente, pelos interesses envolvidos, rendeu belos pareceres jurídicos, como dos Professores J. J. Gomes Canotilho, Sepúlveda Pertence, Luís Roberto Barroso e Virgílio Afonso da Silva, que trilham o caminho da violação à liberdade de escolha dos cidadãos ao se padronizar os produtos fumígenos em suas composições. Eles alegam que, assim, todos os produtos serão iguais e que o Estado estaria escolhendo pelo seu cidadão consumidor, o que redundaria em violação à livre concorrência.

Sustentaram, ademais, desvio de finalidade regulatória, sob o argumento de que, a pretexto de conformar, a autoridade normativa da agência pretendeu, em verdade, o banimento de um produto lícito do mercado brasileiro. Adiciona-se a esses argumentos o de que a Administração Pública, ao restringir uma liberdade ou um direito, possui o ônus da prova, vale dizer, deve demonstrar empiricamente que os móveis deflagradores da conformação restritiva da liberdade possuem lastro científico que justifiquem a restrição que, ainda assim, deve ser proporcional.

Especialmente Virgílio Afonso da Silva (2002), em seu parecer, enfrenta a questão do ponto de vista da proteção dos cidadãos contra os produtos fumígenos, em especial, os adolescentes. De partida, o parecerista diz refutar a tese de que a medida regulatória é revestida de determinismo moral, paternalista ou até mesmo perfeccionista. Afasta, também, o argumento da planificação ou padronização do produto, trazendo exemplos do vinho, do café e do chá que, não obstante sendo os mesmos produtos, permanecem com diferenças substanciais a depender da marca, o que acaba gerando a preferência do consumidor por uma ou outra. Por fim, admite que, se existe uma liberdade prima facie à indústria de produtos fumígenos, essa liberdade é exatamente isso: apenas prima facie.

A liberdade genética pode ser matizada, quando necessário, diante de outras liberdades ou direitos fundamentais, valendo-se, para tanto, da proporcionalidade, comprovadamente já tão utilizada pelo Supremo Tribunal Federal. Enfrenta um a um dos filtros de controle da proporcionalidade, demonstrando que a norma é proporcional e, portanto, não chega a ser violação de liberdade, mas mera restrição que, inclusive, segundo sustenta, está em conformidade com a possibilidade normativa das agências.

Neste particular, a Relatora, Ministra Rosa Weber, concedeu liminar suspendendo os efeitos dos dispositivos da Resolução da Diretoria Colegiada n. 14 da Anvisa até o julgamento final da ação, que seria julgada em 25 de agosto de 2014, mas teve pedido de adiamento pela própria relatora e, por hora, não se sabe a posição final da Corte em relação às questões ali debatidas.

Essa semana o Supremo vai analisar se é crime ou não a posse ou porte de substâncias entorpecentes para uso próprio.

Aguardemos.