O gestor/fiscal do contrato na Nova Lei de Licitações

*Ariston Araújo

Neste artigo quero falar um pouco sobre a figura do Gestor de Contrato (ou Fiscal do Contrato), à luz da nova lei de licitações, a Lei Federal nº 14.133, de 1º de abril de 2021, mas cotejando-o à antiga lei, de nº 8.666, do longínquo ano de 1993. Como a nova lei designou expressamente o representante da Administração para acompanhar a execução dos contratos como Fiscal do Contrato, adota-se doravante este termo, em vez do antigo Gestor de Contrato.

Antes, porém, de adentrar na análise do tema, gostaria de tecer alguns comentários sobre esta importante – e desvalorizada – figura do Fiscal do Contrato.

A primeira coisa a ser dita refere-se ao fato que o gestor/fiscal assume este múnus sem que haja qualquer benefício pecuniário para sua carreira, ou seja, nada recebe por esta função, além de responsabilidades, muita pressão dos superiores e dos órgãos de controle, e inúmeras e inúmeras cobranças….Além de fiscal,  exerce normalmente suas funções para as quais foi nomeado, acumulando com a do Fiscal de Contrato.

Em alguns órgãos – poucos – há a iniciativa de designar o servidor para trabalhar exclusivamente como Fiscal do Contrato, mas esta iniciativa é exceção, a maioria esmagadora prefere o acúmulo das atribuições. Também existe a possibilidade que haja um setor exclusivo para gestão de contratos, com vários servidores ali lotados, bem como existe a possibilidade de se contratar terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de informações pertinentes à sua atribuição (conforme permissivo contido tanto no art. 67 da Lei 8.666/1993 quanto no art. 117 da Lei 14.133/2021), conforme se vê abaixo, cujos artigos tratam da fiscalização do contrato, nas duas leis:

“Art. 67. A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração especialmente designado, permitida a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de informações pertinentes a essa atribuição.

Art. 117. A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por 1 (um) ou mais fiscais do contrato, representantes da Administração especialmente designados conforme requisitos estabelecidos no art. 7º desta Lei, ou pelos respectivos substitutos, permitida a contratação de terceiros para assisti-los e subsidiá-los com informações pertinentes a essa atribuição.”

Note-se, por oportuno, que a nova lei permite a designação de mais de um fiscal para o mesmo contrato, e definiu também as regras na hipótese de contratação de terceiros para auxiliar o fiscal – § 4º do art. 117 -, ao contrário da lei 8.666, que é omissa sobre estes pontos).

Há que se dizer, por oportuno, que a fiscalização do contrato é um poder-dever da Administração e não uma mera possibilidade, de caráter discricionário, conforme se denota pela redação dos dois artigos acima citados, os quais utilizam-se do verbo no imperativo (“deverá”). Na lição de Marçal Justen Filho (in: Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.1333/2021, Ed. Revista dos Tribunais, 2021, pág. 1328), tem-se o seguinte sobre o assunto:

“O art. 117 evidencia que a fiscalização pela Administração não é mera faculdade assegurada a ela. Trata-se de um dever, a ser executado para melhor realizar os interesses fundamentais. Parte-se do pressuposto, inclusive, de que a fiscalização induz o contratado a executar de modo mais perfeito os deveres a ele impostos”.

Dito isto, vamos voltar à figura do Fiscal do Contrato. Importa dizer que, em observação à prática do dia a dia, nem sempre o Fiscal do Contrato é valorizado e, sobretudo, preparado/qualificado adequadamente para o exercício de seu mister. No que tange ao seu aprimoramento, no entanto, a nova lei inovou, pois, ao mesmo tempo que exigiu que o servidor a ser designado como Fiscal do Contrato seja preparado para a função, conforme se vê pelo art. 7º abaixo transcrito, exige que a Administração, quando da elaboração do Estudo Técnico Preliminar (que é o documento inicial das contratações sob a égide da nova lei, que servirá de suporte para elaboração do Termo de Referência) promova a capacitação do fiscal/gestor do contrato, ao teor do disposto no inciso X, do § 1º, do art. 18, também transcrito:

“Art. 7º Caberá à autoridade máxima do órgão ou da entidade, ou a quem as normas de organização administrativa indicarem, promover gestão por competências e designar agentes públicos para o desempenho das funções essenciais à execução desta Lei que preencham os seguintes requisitos:

I – sejam, preferencialmente, servidor efetivo ou empregado público dos quadros permanentes da Administração Pública;

II – tenham atribuições relacionadas a licitações e contratos ou possuam formação compatível ou qualificação atestada por certificação profissional emitida por escola de governo criada e mantida pelo poder público; e (grifei)

III – não sejam cônjuge ou companheiro de licitantes ou contratados habituais da Administração nem tenham com eles vínculo de parentesco, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, ou de natureza técnica, comercial, econômica, financeira, trabalhista e civil.

Art. 18…………………………..

  • 1º O estudo técnico preliminar a que se refere o inciso I do caput deste artigo deverá evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação, e conterá os seguintes elementos:

(…)

X – providências a serem adotadas pela Administração previamente à celebração do contrato, inclusive quanto à capacitação de servidores ou de empregados para fiscalização e gestão contratual;” (grifei).

Além de exigir que a Administração promova a capacitação do Fiscal do Contrato, a nova lei determinou que o mesmo seja auxiliado em suas atribuições tanto pelo setor jurídico quanto pelo controle interno do órgão, conforme previsão contida no § 3º do art. 117 acima citado:

“§ 3º O fiscal do contrato será auxiliado pelos órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno da Administração, que deverão dirimir dúvidas e subsidiá-lo com informações relevantes para prevenir riscos na execução contratual.”

Esta inovação é importante porquanto permite uma maior segurança às ações do Fiscal do Contrato, já que, doravante, este assessoramento é obrigatório e não facultativo (veja que a lei usou o verbo “será” e não “poderá”). E este caráter de importância se dá em maior grau com referência ao controle interno, vez que, mesmo que não constando este dispositivo legal da lei anterior (Lei 8.666/1993), o assessoramento jurídico, na maior parte dos casos, era prestado, ao contrário do controle interno, que, alegando o princípio da segregação das funções, não prezava muito por orientar o fiscal, preferindo agir a posteriori,  inclusive solicitando a responsabilização de fiscais por falhas porventura acontecidas na execução do contrato. Com a nova lei, esta discussão não existe mais, o que denota uma nova formatação da atuação do setor de controle interno, o qual deverá agir com foco voltado mais para a orientação e prevenção do que para a punição, como se “xerife” fosse. A lei, sabiamente, criou um capítulo específico para tratar do controle das contrações (Capítulo III, Título IV, art. 169 e seguintes). Vale a pena o Fiscal do Contrato dar uma lida atenta neste tópico da lei.

Outro ponto importante da nova lei é o que manteve o mesmo dispositivo contido no § 2º, do art. 67, da lei 8.666, que diz que as decisões e providências que ultrapassarem a competência do gestor/fiscal deverão ser solicitadas a seus superiores em tempo hábil para a adoção das medidas convenientes, nos termos insculpidos em seu § 2º do art. 117.

Este ponto tem relevância, pois não é raro que se exija do Fiscal do Contrato a adoção de medidas que fogem de sua competência, como, por exemplo, conceder prorrogação de prazo de entrega de bem/serviço, notificar o contratado sobre imputação de penalidade, entre outros.

Outra inovação da lei 14.133 diz respeito à inclusão, no caput do art. 25, que trata dos assuntos que devem conter no edital da licitação, da fiscalização e da gestão do contrato, ao contrário do art. 40 da lei 8.666, que trata do mesmo tema, que é omisso sobre este ponto. Ao incluir expressamente a fiscalização e a gestão do contrato como parte obrigatória do edital de licitação, o legislador pretendeu realçar esta importante questão para o sucesso das contratações, na sua parte que é mais difícil, que é a execução, ao meu sentir.

Também inovou a nova lei ao determinar que deve constar expressamente no edital de licitação a vedação ao contratado de contratar agente público que desempenhe função na licitação ou atue na fiscalização e gestão do contrato (parágrafo único do art. 48), o que não existe na lei 8.666/1993. Esta norma resguarda a probidade na execução dos contratos pela Administração Pública, daí sua alta significância.

Sobre a responsabilização do Fiscal do Contrato, como todo e qualquer agente administrativo ele é responsável por seus atos. Por outro lado, tanto a lei 8.666 (art. 70) quanto a 14.133 (art. 120), dizem que o contratado será responsável pelos danos causados diretamente à Administração ou a terceiros, decorrentes da execução do contrato, só que a nova lei excluiu os termos “decorrentes de sua culpa ou dolo”, constante da lei anterior. No entanto, em ambas, afirmam que a fiscalização e o acompanhamento do contrato por parte da Administração não excluem nem reduzem a responsabilidade do contratado.

Em relação aos efeitos da fiscalização administrativa, vale a pena citar o insigne doutrinador Marçal Justen Filho, que, no livro anteriormente mencionado (pág. 1336), diz o seguinte:

A atividade de fiscalização desenvolvida pela Administração Pública não transfere a ela a responsabilidade pelos danos provocados pela conduta do particular. Não há, em princípio, relação de causalidade entre a fiscalização estatal e o dano sofrido por terceiro.

No entanto, o defeito na fiscalização pode tornar a Administração solidariamente responsável perante terceiros. Quando o contrato disciplinar a fiscalização em termos que a atividade do particular dependa da prévia aprovação da autoridade administrativa, poderá verificar-se relação de causalidade entre a concretização do dano e a ação estatal”. (grifei).

Mas a lei 14.133 acaba de vez com uma antiga polêmica que havia sobre a responsabilidade da Administração pelo pagamento solidário de encargos trabalhistas nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, pois, já ancorada em decisão do STF, diz, claramente, no § 2º, do art. 121, que a Administração responderá solidariamente quando houver comprovada falha na fiscalização do cumprimento das obrigações do contratado..

            Como conclusão, ousa-se afirmar que:

  1. O Fiscal do Contrato terá uma importância e relevância bastante acentuada com a nova lei de licitações, com a definição mais clara e detalhada de seu papel;
  2. No entanto, a lei exige que seja qualificado e preparado para o exercício desta atribuição; por esta razão, entendo que a Administração deveria remunerar o Fiscal do Contrato pelo exercício da função, além de sua remuneração normal, por meio da concessão de gratificação, ajuda de custo ou outro instrumento legal, o que é muito justo e oportuno;
  3. Isto induz que a Administração Pública não pode perder mais tempo (tendo em vista que a partir de abril de 2023 somente poderá contratar sob a égide da lei 14.133, já que atualmente ela ainda pode optar entre as duas legislações), devendo iniciar de imediato a qualificação dos fiscais de contratos para esta nova realidade;
  4. Apesar de prestigiar o Fiscal do Contrato, a nova lei também estabeleceu maiores responsabilidades para o servidor incumbido desta tarefa, inclusive no que tange ao planejamento das contratações, na chamada fase preparatória, ficando evidente que deve agir com proatividade e responsabilidade e ter conhecimentos técnicos sobre o objeto do contrato;
  5. Portanto, a lei 14.133 avançou e inovou na questão atinente ao Fiscal do Contrato, mas também estabeleceu que a Administração deve profissionalizar a gestão e fiscalização do contrato a partir de sua plena vigência, em abril de 2023.

   

*Ariston Araújo é advogado especializado em licitações e contratações públicas