O garantismo desgarantido

*Marcelo Bareato 

Em tempos de política conturbada, como este que estamos atravessando, onde muito se fala em impeachment de presidente, em retorno do lulismo, em fechamento do Supremo Tribunal Federal, na volta do militarismo, importante se faz entender a origem do termo garantismo para depois evoluir qualquer tipo de pensamento sobre questões outras.

Com origem no século XVIII e mais evidenciada nos estudos de Luigi Ferrajoli, no final do século XX, garantismo é uma teoria jusfilosófica que, dentre outros significados, se traduz em um sistema de amarras impostas ao poder estatal em garantia dos direitos dos cidadãos.

Sob o aspecto penal, o garantismo visa adequar os valores contidos na Constituição Federal. Uma Constituição Garantista, sob a ótica da filosofia política, é aquela que busca garantir uma ação penal contra arbitrariedades do Estado, visando o direito do mais fraco.

Não é por outro motivo que, em 1988, nossa Constituição se tornou o maior texto de garantias a direitos fundamentais do mundo, na perspectiva de que nunca mais retornássemos a suposta era sombria do militarismo.

Sobre o militarismo, poderíamos nos debruçar sobre vários aspectos desde o ano de 1932e passando por 1964, falar sobre o GOLPE (que nada mais foi do que uma ação mista entre a sociedade e os militares), sobre o AI-5 e a razão de sua entrada em vigor, sobre as trágicas mortes, mas fugiríamos de nossa perspectiva e, por essa razão, deixaremos para uma outra oportunidade.

Nos prendamos então ao que norteia nosso artigo de hoje.

Para Luigi Ferrejoli, as garantias penais, bem como as processuais, deixam o campo de combate às arbitrariedades para compor “a principal fonte de legitimação da jurisdição”. Não é por outro motivo que a imparcialidade deve ser a principal característica do magistrado, “absolvendo quando todos – imprensa, forças políticas e opinião pública – pedirem uma sentença condenatória e condenando quando todos pedirem a absolvição”. Nesse seguimento, o autor ainda elucida que “populismo judicial é a mais perversa forma de populismo”, ao mencionar o caso do ex-juiz Sergio Moro (artigo na íntegra disponível no site www.conjur.com.br).

Por populismo, devemos entender o conjunto de práticas políticas que encontram justificativa no apelo populacional (o termo surge no século XIX e chega às nossas literaturas com diferentes significados).

Pois bem! Nada melhor do que trabalharmos alguns casos verídicos, como exemplos, para facilitar o entendimento do que estamos propondo:

  • – HENRY BOREL:

Trata-se do caso em que a mãe biológica e seu convivente Dr. Jairinho, na noite/madrugada do dia 07/08 de março 2021, na Barra da Tijuca – RJ, teriam, supostamente, matado o garoto de apenas 04 anos, mediante tortura. Neste caso, a investigação se desenvolve graças a atividade do advogado do pai biológico de Henry, o qual leva para a mídia o acontecido e pede que a população ajude a desvendar o mistério que envolve aquela trágica morte. Jairinho é médico, vereador e reincidente, ao que tudo indica, na prática de torturar crianças. Leniel, pai de Henry, enfrenta uma verdadeira cruzada para saber a verdade e punir os culpados. O procedimento está em fase de judicialização;

  • – MARIANA FERRER:

Caso de estupro de vulnerável, supostamente praticado por André de Camargo Aranha, onde o advogado, o promotor e o juiz do caso provocam uma audiência de instrução às avessas de todo o ordenamento jurídico, expondo a vítima ao que chamamos “circo dos horrores”, ainda pior do que a jovem havia experimentado e levando a perplexidade aos cidadãos que tomaram conta do ocorrido, ao ponto de propor um projeto de lei para punir promotores e juízes que se omitirem em audiências de instrução e julgamento no sentido de conter atos abusivos praticados por advogados. No mesmo sentido, o CNJ determinou abertura de procedimento para apuração da responsabilidade do magistrado pelo ato, entendido como “monstruosidade”. Mariana, que sofreu danos irreparáveis, hoje reside em outro estado, atravessa, junto com sua mãe e irmã, uma síndrome do pânico e prefere se esconder a enfrentar as ameaças praticadas por agentes públicos e amigos do suposto acusado, aguardando a atitude da Justiça Brasileira no sentido de não permitir que isso aconteça com outras pessoas.

Os casos acima são emblemáticos porque expõem a fragilidade de uma Justiça criada para ser forte e proporcionar um processo penal-constitucional por excelência, pautado nos princípios do devido processo legal, da imparcialidade do juiz e da busca da verdade.

Por primeiro, devemos lembrar que a Constituição Brasileira é a maior Carta de direitos e garantias fundamentais, como já dissemos, para que qualquer acusado possa receber um processo legítimo. Já o processo, somente será legítimo quando o juiz que o preside obedecer a todas as regras constitucionais, penais e processuais penais, cuidando do processo para que seja respeitoso, e nele sejam tratados assuntos relacionados a lei e sua extensão, deixando de fora, qualquer populismo ou concepções morais.

A condenação, ou a absolvição, somente será válida na medida em que todos os aspectos trazidos pela acusação e pela defesa sejam enfrentados e decididos de forma imparcial, vale dizer, mantendo-se o juiz equidistante das discussões, mas absorvendo o conteúdo de tudo aquilo que lhe chega ao conhecimento para, na sentença, formar o seu juízo de valor (sobre esse item recomendamos a leitura sobre o caso Lula e a anulação de todos os processos pelo STF).

O problema brasileiro, está ai!

No primeiro caso, do garoto Henry, a perícia está contaminada, os depoimentos foram vazados, o delegado durante toda a investigação indicou seu proceder à imprensa. O promotor, antes mesmo de denunciar, já estabelecia sua forma de agir em sucessivas entrevistas. E, certamente, o juiz e os jurados do caso serão contaminados pela força midiática. Construindo um julgamento politizado para atender aos anseios da sociedade e daquilo que a televisão noticiou, transformando tudo em um amontoado de inconstitucionalidades e em procedimento que não se reconhece à luz de nossa legislação.

Por sua vez Mariana tinha todos os argumentos necessários para um procedimento legítimo. Mas que, afastando-se o magistrado, o promotor e o advogado do que a lei determina, e seguros na impunidade que uma audiência fechada (sem a presença de populares) por um crime de estupro lhes proporcionaria, rasgaram a Constituição e o devido processo legal. Sendo necessária a via midiática para recompor, se é que podemos dizer assim, um pouco da falta de dignidade associada a total ausência dos direitos e garantias fundamentais, devidos à Mariana e a qualquer ser humano no Brasil, para tentar ajudar outras pessoas que passem por sofrimento semelhante ao que fora submetida, a terem uma prestação jurisdicional adequada.

Nosso artigo de hoje é exatamente para chamar a atenção de você, meu Caro e Dileto Leitor, à necessidade da busca do conhecimento das leis vigentes e, sobretudo, das garantias e direitos fundamentais que nossa Constituição prescrevem, na intenção de que tenhamos processos apartados dos dilemas (julgamentos morais), respeitosos dos direitos que nos são assegurados, com condenações ou absolvições irretocáveis por serem constitucionais; evitando, de uma vez por todas, que o que foi conquistado com sofrimento e aperfeiçoamento de lutas amadurecidas ao sabor de estudos infindáveis sobre as regras jurídicas que melhor se aplicam às nossas necessidades se transformem no atual GARANTISMO DESGARANTIDO.

*Marcelo Bareato é  doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Advogado Criminalista, membro da Comissão Especial de Segurança Pública da OAB Nacional, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, Presidente da Comissão Especial de Direito Penitenciário e Sistema Prisional da OAB/GO, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).