A utilização da Lei da Alienação Parental para casos em que não ocorra alienação parental

*Cristian Fetter Mold

Completando somente dez anos neste ano de 2020, a Lei nº 12.318/10, conhecida como “Lei da Alienação Parental”, continua em franco debate, havendo inúmeras discussões em aberto sobre formas de aperfeiçoá-la e até mesmo ferrenhos defensores de sua revogação, alguns dos quais “acusando” a Lei de “favorecer pais pedófilos”, afirmativa gravíssima, ao menos do ponto de vista midiático, mas que ainda carece de algum tipo de demonstração fiável.

Adotando modelo conceitual, diríamos até didático, o documento legal principia objetivando demonstrar seu campo de atuação, deixando claro que para efeito de aplicação da Lei, considera-se ato de alienação parental a “interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”.

Portanto, em uma leitura rápida, parece ser de tranquila compreensão, a ideia de que os “sujeitos” da alienação seriam: (a) a pessoa alienadora, ou seja, alguém que está praticando atos com os objetivos acima; (b) a pessoa alienada, isto é, aquela que se pretende “afastar” e (c) a “vítima” – criança ou adolescente, alvo das atitudes e manipulações da pessoa alienadora, a qual está sendo diretamente induzida para que repudie um dos genitores.

No correr destes dez anos, no entanto, já aprendemos que as situações podem ser bem mais complexas do que imaginou o legislador, podendo haver mais de uma pessoa alienada e mais de uma pessoa alienadora, podendo haver condutas alienantes recíprocas, autoalienação, falsas acusações de alienação, dentre outras situações descritas pela doutrina e pela jurisprudência, ambas sempre em constante aprimoramento.

Todavia, o objetivo desse texto é extrair do próprio documento legal a possibilidade de se discutir a aplicação da Lei e das penalidades previstas no artigo 6º para casos em que não esteja clara, ou suficientemente comprovada, a Alienação, digamos “clássica”, no sentido de se mirar com sucesso a psique da jovem criança ou adolescente.

Assim, pode soar estranho falarmos em aplicar a “Lei da Alienação Parental” para casos em que não esteja ocorrendo propriamente uma “interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente”, ou no que pareceria uma antilogia, aplicar a “Lei da Alienação Parental” a casos em que não esteja ocorrendo ou não esteja demonstrada a Alienação Parental.

Felizmente, uma leitura do documento legal com um pouco mais de calma, permite-nos verificar que, embora tenha recebido o popular nome de “Lei da Alienação Parental”, até mesmo por influência de seu preâmbulo, bem se vê que algumas das condutas exemplificadas no parágrafo único e incisos do art. 2º não visam, ao menos diretamente, a psique da criança.

Bem se pode inferir que as hipóteses previstas nos incisos V (omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço) e VI (apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente), não se tratam de “campanhas difamatórias” que visem provocar o repúdio de um filho contra seu genitor. Tratam-se de atos que podem levar ao afastamento da pessoa alienada, sem que se altere a percepção da vítima criança ou adolescente sobre esta pessoa, ao menos a priori.

Além do mais, há na doutrina o entendimento de que mesmo as “campanhas de difamação” contra a pessoa alienada podem não surtir efeitos se a criança, mais especialmente o adolescente, tiver o discernimento necessário para lidar com os destemperos verbais de um pai ou uma mãe, não desenvolvendo por isso sentimentos de repúdio ao outro genitor.

Haveria então uma tentativa infrutífera de alienação parental.

No julgamento da Apelação Cível nº 1006157-08.2018.8.26.0077, por exemplo, a 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, sob relatoria do Des. José Joaquim Dos Santos, julgou um caso com pedidos de declaração de Alienação Parental praticada contra a genitora, em que extraiu-se dos autos que:

“(…) os dois filhos dos litigantes (contam 17 e 10 anos de idade). Ainda que o genitor tente difamar a genitora, não acreditam nos comentários do pai, concluindo o estudo psicossocial nesse sentido (“Em relação aos filhos do ex-casal, não foi identificado nenhum comportamento indicativo de que estejam sendo vítimas de alienação parental” – fls. 632) e, se isso não bastasse, mantendo relacionamento satisfatório com a genitora, e não a desmoralizando, juntamente, com o apelado, de sorte que, nesse ponto, a r. sentença merece ser prestigiada”.

Ou seja, havia atos de tentativa de alienação parental, mas que não chegaram a provocar alteração na percepção positiva que os filhos tinham da mãe, segundo o entendimento dos julgadores.

E há mais: o abuso do Direito de Petição, o excesso de manobras protelatórias nos autos de um eventual processo de guarda e convívio, recursos notoriamente procrastinatórios, a utilização de denúncias excessivas em Delegacias, Conselhos Tutelares, até mesmo perante o empregador da pessoa alienada, as gestões junto a prestadores de serviços próximos à criança/adolescente (professores, babás, porteiros) para que também repudiem a pessoa alienada, perseguições ao novo núcleo familiar da pessoa alienada;  todas práticas igualmente deletérias, praticadas sob o manto de uma aparente normalidade, de uma suposta “defesa dos Direitos”, mas sem mirar propriamente na alteração da visão que o jovem/vítima tem sobre a pessoa alienada.

Por essas e outras, entendemos que uma mera leitura do artigo 6º da Lei confere plena proteção aos casos acima narrados, quando reza: “Caracterizados atos típicos de alienação parental ou qualquer conduta que dificulte a convivência de criança ou adolescente com genitor, em ação autônoma ou incidental, o juiz poderá, cumulativamente ou não, sem prejuízo da decorrente responsabilidade civil ou criminal e da ampla utilização de instrumentos processuais aptos a inibir ou atenuar seus efeitos, segundo a gravidade do caso”… e elenca penalidades cíveis, também em caráter exemplificativo.

Deste modo, como não existem (ou não deveriam existir) palavras inúteis na Lei, há que se concluir que a Lei pode ser aplicada a casos em que, embora não esteja demonstrada a prática de Atos típicos de Alienação Parental, estejam ocorrendo “condutas que dificultem a convivência da criança ou adolescente com genitor”.

Tratam-se de situações práticas que podem, por vezes, ser percebidas pelo Julgador prima facie, sem necessidade de produção de provas periciais, por exemplo, ou de ser necessário julgar, em definitivo, se estamos diante de uma pessoa “alienadora”, algo que quase sempre irá demandar um estudo profundo do caso.

Tal percepção ocorreu no julgamento do Agravo de Instrumento nº 07210322420188070000, Relator: Des. Gilberto Pereira De Oliveira, 3ª Turma Cível do TJDFT, publicado no DJE de 18/6/2019; em que diante de uma reiterada acusação infundada de abuso sexual contra a figura paterna, os julgadores, sem nem mencionar a ocorrência ou não de prática alienante, o que seria até esperado, determinaram a ampliação do direito de visitas por parte do genitor, por não se revelar prejudicial ou nociva aos interesses da menor.

Temos ainda situações que podem surgir no curso do Processo e que podem ser reprimidas com decisões, inclusive de cunho pecuniário, que inibam a conduta do mau litigante, o qual, embora não esteja praticando atos clássicos de Alienação Parental, utiliza-se do Processo de forma abusiva, como meio de eternizar a discussão, dificultando até mesmo o julgamento definitivo do feito e, por conseguinte, a volta à normalidade nas relações entre o genitor/genitora que se busca afastar e seus filhos.

Foi o que se reconheceu no julgamento da Apelação Cível nº 1003289-85.2018.8.26.0003, pela 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, sob relatoria do Des. Francisco Loureiro. Na ocasião, os julgadores afastaram por completo a declaração de prática de atos de alienação parental pela mãe, já que os laços entre o filho e o pai permaneciam incólumes.

De todo modo, independentemente do afastamento da “declaração” de uma alienação parental, a Câmara acolheu o pedido de modificação da guarda para a modalidade da guarda compartilhada, manteve a custódia física na residência materna, fixou o regime de convívio paterno-filial e ainda reconheceu a litigância de má-fé da autora por usar dos meios processuais de forma inadequada, condenando-a nos moldes do art. 80, V, do CPC.

Pelos argumentos acima expostos, entendemos que muitas vezes seja possível atingir os fins a que a lei se destina, sem que seja necessária a declaração “gravada em pedra” de que houve verdadeira alienação, de que há uma pessoa “alienadora”, a qual deva merecer “penas terríveis e perpétuas”. Embora existam situações gravíssimas que reclamem medidas extraordinárias, não devemos nos afastar do objetivo maior da Lei, o qual parece ser o de prevenir e combater práticas que visem prejudicar o Direito fundamental de convívio familiar para crianças e adolescentes.

Operadores do Direito que somos, não podemos ficar com a ideia de que a Lei possui somente caráter punitivo e que a única punição possível seria a inversão da guarda e a consequente “neo-alienação do ex-alienador”. Tal interpretação seria um perigoso reducionismo.

O uso adequado da Lei pelos operadores do Direito é o que há de garantir sua perenidade. Seu mau uso, assim entendemos, também deve merecer a devida atenção, já que defendemos que a falsa alegação de alienação parental também pode ser enquadrada como uma forma de alienação parental e/ou de dificultar a convivência de criança ou adolescente com um dos genitores.

*Cristian Fetter Mold é advogado, professor de Direito de Família e Sucessões, membro do IBDFAM.