Aplicação da IA e os limites da intervenção judicial em concursos públicos

Vivemos em uma era marcada pelo grande avanço da tecnologia, e a aplicação da inteligência artificial (IA) tem remodelado o panorama de diversos setores, incluindo o âmbito dos concursos públicos.

Essa transformação digital não somente redefine a execução e a eficiência dos processos seletivos públicos mas também levanta questões significativas acerca da intervenção e dos limites do Poder Judiciário na supervisão de tais inovações.

No cerne desta discussão, reside o princípio da separação dos poderes, um pilar da Constituição Federal, que consagra a independência e a harmonia entre os Poderes da União – Executivo, Legislativo e Judiciário.

Este princípio, enquanto fundamento do Estado de Direito, implica uma atuação cautelosa do Judiciário ao lidar com as decisões administrativas, especialmente aquelas permeadas por juízos de conveniência e oportunidade, conhecidos como atos discricionários.

A intervenção da inteligência artificial nos concursos públicos desafia esse paradigma, introduzindo novas nuances na avaliação da legalidade e da moralidade administrativas.
O presente artigo visa explorar até que ponto a inovação tecnológica influencia as fronteiras da intervenção judicial, sem descuidar dos princípios que regem a administração pública e a própria essência da jurisdição.

Inteligência Artificial e detecção de ilegalidades

A utilização da Inteligência Artificial (IA) para identificar ilegalidades em concursos públicos não necessariamente constitui uma violação do princípio da não intervenção no mérito administrativo.

O papel da IA, neste contexto, é fornecer uma análise baseada em dados que pode revelar
inconsistências, erros ou desvios de procedimentos estabelecidos legalmente.

A função do Judiciário, ao utilizar essas análises, não é reavaliar decisões discricionárias da
Administração, mas verificar a aderência dessas decisões aos princípios legais e regulamentares, o que está plenamente dentro de sua competência.

Fundamentação jurídica

A atuação do Poder Judiciário, mesmo diante de análises realizadas por IA, permanece restrita à verificação da legalidade e da legitimidade dos atos administrativos.

Conforme estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o Judiciário pode e deve intervir quando houver evidência de ilegalidade, abuso de poder ou violação de direitos fundamentais, independentemente de essas evidências serem fornecidas por análises humanas ou algoritmos de IA.

A IA, portanto, atua como uma ferramenta para iluminar fatos que podem ser relevantes para essa avaliação jurídica.

Limites de atuação e intervenção

No entanto, é crucial que a utilização da IA pelo Judiciário respeite certos limites para não
configurar uma invasão no mérito administrativo. Isso inclui assegurar que:

1- A IA seja utilizada apenas para identificar possíveis ilegalidades, sem substituir o
julgamento discricionário da Administração por um “julgamento automatizado”.

Exemplos práticos: Em um concurso público, um algoritmo de IA é utilizado para analisar padrões de respostas entre diferentes candidatos. A IA detecta um grupo de respostas idênticas entre candidatos que não poderiam logicamente ter as mesmas respostas devido a diferentes perfis e históricos. Esta situação sugere uma possível fraude ou vazamento de respostas.

Neste cenário, a análise da IA serviria como base para iniciar uma investigação, mas não para determinar automaticamente a culpa dos candidatos ou anular o concurso sem uma avaliação adicional.

O papel da IA é, portanto, de alerta inicial, que depois deve ser acompanhado por uma investigação humana que considera o contexto, as possíveis justificativas e as evidências adicionais.

2- As análises de IA sejam transparentes, verificáveis e passíveis de contestação, garantindo o direito ao contraditório e à ampla defesa.

Exemplo Prático: Suponha que, em um concurso público para ingresso na polícia federal, a IA seja empregada para analisar padrões nas notas atribuídas nas provas discursivas. A ferramenta identifica um conjunto de candidatos que receberam notas significativamente baixas em comparação com suas performances nas provas objetivas, indicando uma possível inconsistência ou erro na correção.

Neste contexto, a transparência significa que os algoritmos utilizados pela IA, bem como os
critérios de análise, devem ser acessíveis e compreensíveis tanto para a Administração Pública quanto para os candidatos. Caso um candidato conteste sua nota, ele deve ter o direito de entender como a IA chegou a suas conclusões.

A verificabilidade refere-se à capacidade de independentemente testar e confirmar os resultados gerados pela IA. Neste caso, se o candidato recorrer para o Judiciário, deve ser possível submeter as correções das provas discursivas a uma revisão independente, confirmando ou refutando as discrepâncias identificadas pela IA.

3- A intervenção judicial baseada em análises de IA se limite a casos onde existam claras
violações de leis, regulamentos ou princípios constitucionais.

Exemplo Prático: Consideremos um concurso para cargos jurídicos em uma prefeitura onde a IA identifica um padrão anômalo na distribuição das notas das provas objetivas, sugerindo uma possível falha no sistema de escaneamento das respostas.

Nesse caso, a intervenção judicial deve se concentrar especificamente em avaliar se houve uma violação das normas que regem o concurso, como falhas técnicas que comprometam a isonomia entre os candidatos.

O Judiciário não deve reavaliar as respostas dos candidatos (uma prerrogativa da administração), mas sim determinar se o processo como um todo foi conduzido de acordo com a legislação vigente, garantindo assim que nenhum candidato seja prejudicado por erros técnicos ou administrativos.

Em cada um desses exemplos, o uso da IA no contexto de concursos públicos deve ser
cuidadosamente equilibrado para apoiar a justiça e a equidade do processo, sem ultrapassar os limites da intervenção judicial no mérito administrativo.

Ao respeitar esses princípios, o Judiciário assegura que a tecnologia sirva como uma ferramenta para aprimorar a transparência e a legalidade, fortalecendo a confiança no sistema de concursos públicos.

Por isso, A aplicação da IA pelo Judiciário deve ser cuidadosa e criteriosa, com ressalvas para garantir que a tecnologia sirva como um instrumento para promover a justiça e a legalidade sem usurpar o papel discricionário da administração pública.

A IA pode ser uma ferramenta poderosa para revelar padrões e práticas que podem indicar
ilegalidades, mas seu uso deve ser acompanhado de transparência, responsabilidade e a
oportunidade de contestação. Ao aderir a estes princípios, o uso da IA pode fortalecer o Estado de Direito, aumentando a eficiência e a equidade dos procedimentos judiciais e administrativos.

Conclusão

Portanto, o uso de Inteligência Artificial para detectar ilegalidades em concursos públicos não fere o princípio da não intervenção do Poder Judiciário no mérito administrativo, desde que seja utilizado como uma ferramenta para aferir a conformidade dos atos administrativos com a lei e com os princípios administrativos.

Ao invés de redefinir os limites da intervenção judicial, a IA oferece um meio mais eficiente e preciso para assegurar que a atuação da Administração Pública esteja em harmonia com os preceitos legais e éticos estabelecidos.