Voto de desembargador do TJGO chama atenção ao citar Gestapo, Ovídio e Maquiavel em hc que resultou no trancamento de ação

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Um voto proferido pelo desembargador Adriano Linhares Camargo, da 4ª Câmara Criminal Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO), em julgamento de habeas corpus, ganhou destaque não apenas pela decisão, mas pelas referências históricas, literárias e filosóficas utilizadas na fundamentação. O magistrado citou a Gestapo — a temida polícia secreta nazista —, a obra Heroides, do poeta romano Públio Ovídio Naso, e o clássico O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, ao analisar a atuação da Polícia Militar em um caso de tráfico de drogas.

O habeas corpus foi concedido em favor de um acusado preso em flagrante com aproximadamente 4,2 quilos de cocaína e 2 quilos de crack. Ao acolher a tese da defesa, feita pelo advogado Frederico Aparecido Batista, o relator considerou que a atuação policial violou garantias fundamentais, destacando inconsistências no Auto de Prisão em Flagrante e ausência de elementos mínimos que justificassem a ação estatal.

Segundo o desembargador, a prisão foi fundamentada apenas em supostas “denúncias anônimas” recebidas por um “serviço de inteligência”, sem que se identificassem os agentes responsáveis por essas informações. “No Estado Constitucional e Democrático de Direito não se transige com a possibilidade de atividades típicas da Geheime Staatspolizei (Gestapo – Polícia Secreta Nazista)”, afirmou o magistrado, criticando a falta de transparência e controle sobre a origem das denúncias.

O relator ainda pontuou que não foi informado por quais canais essas denúncias teriam sido recebidas — se por e-mail, telefone funcional, Copom ou outro meio institucional — e alertou para o risco de se admitir delações apócrifas sem qualquer verificação. “As delações podem ser apócrifas; os agentes do Estado, nunca”, frisou.

Ctrl+C e Ctrl+V

O relator salientou que o Auto de Prisão em Flagrante contém diversos desalinhos, como o uso do método de atalhamento de edição de texto copiar-colar (Ctrl+C e Ctrl+V). Disse que  se observa que os registros de seus conteúdos são, exatamente, idênticos.

“Os depoimentos são absolutamente idênticos e todos os erros que poderiam ter ocorrido no lexo, no panlexo, em cada palavra que foi dita, foram reproduzidos. Impossível alguém reproduzir a literalidade contextual de um determinado evento material com as mesmas palavras que outra pessoa”, observou o magistrado.

Na fundamentação do voto, Linhares Camargo também fez referência à prática conhecida como fishing expedition, ou pescaria probatória — situação em que o Estado inicia diligências sem indícios concretos, com o objetivo de encontrar alguma infração. Ele criticou a adoção desse tipo de conduta e rejeitou a ideia de que os fins justificariam os meios, aludindo ao pensamento maquiavélico consagrado na obra O Príncipe, e ainda mais antigo, presente em Heroides, de Ovídio. Neste sentido, mencionou ainda artigo de Alexandre Morais da Rosa, que aborda o desafio do Processo Penal em punir “dentro das regras do jogo válido.”

Por unanimidade

No caso, a 4ª Câmara Criminal do TJGO, ao seguir o voto do relator, anulou, por unanimidade, toda a prova produzida contra o acusado e determinou o trancamento do processo-crime, “diante da inexistência de prova de materialidade hígida e imune à ilicitude”. Foi anulada a apreensão de 4,2 kg de cocaína e 2 kg de crack.

O relator reconheceu a falta de comprovação de denúncias anônimas, ausência de fundada suspeita para ação policial, falta de Aviso de Miranda (direito ao silêncio), Fishing Expedition (pescaria probatória) e inviolabilidade domiciliar.

Leia aqui o acórdão.

6065769-96.2024.8.09.0093