Para especialistas, Estatuto da Família é inconstitucional e discriminatório

Wanessa Rodrigues

A Comissão de Direito Homoafetivo, juntamente com a Comissão de Direito de Família da seccional goiana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-GO), se reúne nesta segunda-feira (14/09), para discutir a adoção homoafetiva. Durante o encontro, marcado para às 19 horas, na sede da OAB-GO, no Setor Marista, será proposta assinatura de uma nota de repúdio ao Estatuto da Família (PL 6583/2013), em discussão no Congresso Nacional.

chyntia
Mesmo que o Legislativo tente impor um modelo, conforme avalia Chyntia Barcellos, este será letra morta, sem efeito, pois os vínculos continuarão existir, mesmo sem a anuência do Estado.

A reunião ocorre mais de dez dias após o relator do projeto de lei na Câmara, o deputado federal Diego Garcia (PHS-PR) , manter em seu substitutivo o conceito básico de que “a família é formada por um homem e uma mulher, através do casamento ou da união estável, e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”. A proposta original, de autoria do deputado Anderson Ferreira, do PR de Pernambuco, dispõe sobre os direitos da família e estabelece diretrizes de políticas públicas de valorização e apoio à entidade familiar.

O texto tem sido alvo de polêmica no Brasil por definir a família como o núcleo formado pela união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável ou, ainda, por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Para a advogada Chyntia Barcellos, presidente da Comissão de Direito Homoafetivo da OAB-GO, o Estatuto da Família é inconstitucional, discriminatório, excludente, homofóbico, machista, patriarcal e não pode produzir qualquer efeito no mundo jurídico.

Isso porque, conforme lembra a advogada, o Supremo Tribunal Federal (STF), em maio de 2011, ampliou o conceito de família, ao reconhecer a união homoafetiva e equipará-la em direitos e obrigações à união estável entre o homem e a mulher. Chyntia lembra que a sociedade brasileira, assim como inúmeras partes do mundo, é uma sociedade plural, com arranjos familiares múltiplo. Assim, mesmo que o Poder Legislativo tente impor um modelo, conforme avalia a especialista, este será letra morta, sem efeito, pois os vínculos continuarão existir, mesmo sem a anuência do Estado.

Discriminatório
Para Chyntia, o texto é flagrantemente discriminatório e atenta não só contra a dignidade dos casais homoafetivos, mas também contra a sociedade como um todo. “Uma sociedade igualitária, que protege os direitos humanos que são direitos de todos, não mitiga uma minoria considerável da população em detrimento de razões religiosas, uma vez que o Estado brasileiro é laico e deve primar por esta laicidade”, diz.

A advogada acredita veementemente que o texto não será aprovado. Ela ressalta que a simples tramitação já causa imenso dano à sociedade, pois traz o preconceito à tona, afetando milhares de pessoas, não só homossexuais e LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais), mas também suas famílias e amigos. “Legitimando, a discriminação que se traduz pela homofobia, que mata e coloca o Brasil como o país com mais alto índice de homicídios em razão de uma intolerância hipócrita e de ocasião”, completa.

advogada lana
“Permitir que essas pessoas tenham direitos iguais aos heteroafetivos não é pecado, mas, sim, amor ao próximo”, diz a advogada Lana Carmo de Araújo.

Fatos contemporâneos
A advogada especialista em Direito de Família e professora Lana Carmo de Araújo, explica que quando se estuda Direito aprende-se que é imprescindível que a norma a ser criada esteja intrinsecamente ligada aos fatos contemporâneos e a ela estejam inseridos os valores da sociedade que terá seus atos normatizados. No caso do PL que institui o Estatuto da Família, observa a advogada, os fatos ou circunstâncias atuais de nossa sociedade, que devem ser estudados e analisados ao se criar uma norma, foram ignorados. “Por que não se pode considerar como família duas pessoas que cuidam uma da outra durante a vida por terem o mesmo sexo?”, questiona.

Lana salienta que o projeto, além de excluir os que vivem em homoafetividade do conceito de família, promove a mudança de nomenclatura. Homem e mulher que formam um lar serão vistos como uma família; mulher com mulher ou homem com homem que formam um lar serão uma “parceria vital”, segundo o projeto de lei do Estatuto da família.

Esta diferenciação de nomenclatura, conforme a especialista, remete à antiga distinção feita por filhos nascidos dentro do casamento daqueles nascidos de relacionamentos onde o casamento não existia. Os primeiros eram tidos como filhos “legítimos”, detinham todos os direitos de herança, já os segundos, eram tidos como filhos “ilegítimos”, e não possuíam os mesmos direitos daqueles. Hoje essa distinção é proibida pela própria Constituição Federal, em seu artigo 227, parágrafo 6º.

Violação
Para Lana, o Estatuto da Família viola vários princípios constitucionais, inclusive o principal deles que é a dignidade da pessoa humana. Por serem considerados como uma entidade diferente da família, esta distinção agride preceitos constitucionais fundamentais como os princípios da liberdade, da intimidade, da igualdade e da proibição de discriminação. Porém, ela acredita que, pela completa regressão de direitos que este conceito de família promove, é difícil que o projeto seja aprovado.

Consequências
Lana explica que o conceito de família apresentado no PL geraria consequências no certame jurídico. Ela cita uma situação corriqueira nos Tribunais. Duas pessoas que vivem juntas em homoafetividade por anos constroem sua vida e adquirem bens ao longo da união. De repente, um vem a falecer. Para ter direito a ser herdeiro o companheiro precisa do casamento, caso contrário não participará em nada na divisão do patrimônio que ajudou a edificar. Sem o reconhecimento como família, esclarece a especialista, “estas pessoas podem ter sérios problemas patrimoniais em um momento doloroso e desestruturador, que é aquele em que se perde um ente querido.”

Religião
Lana ressalta que muitos temem a afronta à religião ao reconhecer legalmente os homoafetivos como uma família. Mas a advogada lembra que o casamento ou união estável entre homoafetivos é feito no cartório de registro civil e nenhum sacerdote está obrigado a realizar casamento entre pessoas do mesmo sexo. O casamento que agora é permitido é apenas o civil e não o religioso. A liberdade de crença não foi afetada. É a formalização de uma situação fática para que tenha valor no meio jurídico. “Permitir que essas pessoas tenham direitos iguais aos heteroafetivos não é pecado, mas, sim, amor ao próximo”, diz.