Para especialista, Reforma Trabalhista já traz reflexos na saúde mental do trabalhador

A nova dinâmica produtiva trazida pela reforma trabalhista pode contribuir para o aumento dos transtornos mentais que já são a terceira maior causa dos afastamentos do trabalho no Brasil. Em entrevista ao Tribunal Regional do Trabalho de Goiás (TRT-18), a advogada Carla Carneiro fala sobre os reflexos da reforma trabalhista na saúde mental e relações de trabalho. A advogada, que é doutoranda em psicologia social, do trabalho e das organizações, explica como diagnosticar que o transtorno mental relacionado ao trabalho e sobre as ações que devem ser tomadas para minimizar as ocorrências. Confira:

Advogada Carla Carneiro.

Ainda é um desafio falar de saúde mental na vida contemporânea? A impressão que temos é que o modelo produtivo nos exige cada vez mais. Ficamos cada vez mais atentos e diminuímos o tempo de lazer. Isso pode afetar nossa saúde mental?
Infelizmente, ainda hoje prevalece a ideia de que quem precisa recorrer a um profissional de saúde mental não merece credibilidade porque não conseguir fazer uso de suas próprias razões. Por outro lado, o adoecimento psíquico, na maioria das vezes, é invisível, porque atinge principalmente o campo da subjetividade. Isso faz com que o sofrimento se torne ainda maior, uma vez que é difícil demonstrar aquilo que se sente.

O modelo produtivo capitalista sob a égide do ideal neoliberal globalizado impõe o afastamento do Estado, constituindo assim o que comumente se denomina Estado Mínimo, para que o indivíduo tenha maior mobilidade e flexibilidade para dobrar-se à sua vontade, que é justamente a priorização do lucro em detrimento da dignidade humana.

Trata-se, portanto, de um modelo produtivo que remonta aos tempos da Revolução Industrial, onde direitos eram inexistentes e a produção andava de mãos dadas com a precarização, adoecimento, morte e o que é pior, no Brasil, com condições análogas a trabalho escravo. O tempo de lazer se torna exíguo e praticamente inexistente, uma vez que as mídias sociais e instrumentos tecnológicos de rápida comunicação absorvem-nos cada vez mais, dificultando assim a delimitação entre o espaço privado e o espaço de trabalho, tornando-os confluentes e conflitantes.

Por outro lado, os novos modelos de contratação legalizados pela Reforma Trabalhista, impõem a possibilidade do teletrabalho, home office, pejotização, terceirização, etc. Tudo isso nos fragiliza e nos submete ainda mais ao capital e às novas formas de produção, pois dele depende a nossa sobrevivência.

Assim é que a nossa saúde mental é ainda mais afetada e abalada, sobretudo em tempos de crise econômica, política e social, produzindo, dentre outros, o suicídio decorrente do trabalho. Essa foi uma conclusão apontada por todos os palestrantes do 8º Congresso Internacional de Saúde Mental no Trabalho realizado em Goiânia nos dias 17 a 19 de outubro.

Como diagnosticar que o transtorno mental está relacionado ao trabalho?
O melhor diagnóstico advém de uma perícia na organização do trabalho e saúde mental no indivíduo para se estabelecer o nexo causal. Hodiernamente, os peritos judiciais têm-se limitado a perícia no indivíduo. Isso contraria as orientações e diretrizes publicadas pelo Programa de Trabalho Seguro, as quais sugerem que as perícias em saúde mental devem levar em consideração o contexto organizacional.

Pois, ainda que a perícia de saúde mental limitada ao indivíduo possa constatar a existência do nexo causal, ela impede que se constate, por exemplo, a existência da prática de assédio moral na organização do trabalho. Prática essa que será responsável não somente pelo adoecimento de um único trabalhador que teve a coragem a bater às portas da Justiça do Trabalho, mas de todos os demais.

Assim é que a perícia em saúde mental no contexto organizacional do trabalho permitirá ao Poder Judiciário atuar na base do problema, desconstituir a causa, e dessa forma, não só evitar uma série de adoecimentos e mortes, mas principalmente reduzir o passivo trabalhista que assola o próprio judiciário.
Somente dessa forma alcançaremos o Estado Democrático de Direito preconizado pela nossa Carta Magna, em específico no seu Artigo 200, Inciso VIII e Artigo 225, que tratam do equilíbrio ecológico do meio ambiente do trabalho.

Como seriam realizadas essas ações e como as empresas devem adotá-las?
A adoção dessa prática foi sugerida pelo painel relativo aos riscos emergentes e modelos de prevenção do 8º Congresso Internacional de
Saúde Mental no Trabalho. Sugeriu-se que o Poder Judiciário Trabalhista adotasse um filtro eletrônico que permitisse selecionar ações reclamatórias trabalhistas que tenham um determinado tipo de adoecimento e/ou morte ou métodos de gestão adoecedoras em face de determinadas empresas.

Os nomes das empresas selecionadas seriam encaminhados ao Ministério Público do Trabalho para que esse pudesse investigar as condições de saúde
mental da coletividade através de uma perícia em saúde mental a ser realizada no âmbito da organização do trabalho. Sobre esse aspecto, o Dr. Ney Maranhão, Juiz do Trabalho no Pará, especialista em Direito Ambiental do Trabalho, declarou a importância dessa ação intervencionista, uma vez constatado que a prática danosa expõe a coletividade laboral a um risco ambiental que requer o cuidado e proteção do Estado.

Assim é que, constatada através da perícia a prática danosa ambiental coletiva, à empresa poluidora seria exigido a apresentação de um Projeto
de Gestão Labor-Psíquico Ambiental onde se previsse a adoção de gestões não adoecedoras, além de um constante monitoramento com ações
consicentizadoras e formadoras que permitissem o equilíbrio ecológico do ambiente do trabalho poluído e degradado.

Ações essas que passam necessariamente pela adoção e respeito aos espaços públicos de discussão e deliberação preconizados por Cristophe
Dejours, os quais possibilitam uma escuta clínica de respeito que leva necessariamente ao restabelecimento equilibrado da atividade deôntica,
uma vez que realizam o que Freud denomina de “cura pela fala”.

Qual a importância desses espaços no combate ao adoecimento do trabalhador?
Esses espaços adotados, naturalmente, impedem o adoecimento. Mas para uma organização do trabalho em contexto de adoecimento sugeriu-se
também a adoção da Clínica do Trabalho, uma simples reunião grupal semanal, com duração de 01h30, que sob a coordenação de um profissional
em saúde mental especializado em psicodinâmica do trabalho, poderá conduzir os diálogos e reflexões de um coletivo de trabalho adoecido que
encontrará nesse espaço a ressonância e significação do próprio sofrimento, compreendendo então que não está sozinho, mas conta com
um coletivo que o fortalecerá e permitirá que sobreviva, permaneça no trabalho e consiga transpassar o quadro de adoecimento psíquico, adotando estratégias de enfrentamento e defesa, as quais possibilitarão ao indivíduo transformar o sofrimento rígido em sofrimento criativo e dessa forma encontrar prazer no trabalho.

A reforma trabalhista que completou um ano em 11 de novembro trouxe reflexos para a saúde mental do trabalhador? É verdade que ela desconsiderou normas basilares de segurança e saúde?
Os reflexos da reforma trabalhista na saúde mental do trabalhador já se fazem sentir. Realizada de forma não democrática, uma vez que levou ao conhecimento público em todo o Brasil a pretensão de se modificar unicamente 05 dispositivos da CLT, cujo projeto de lei foi posteriormente acrescentado
com mais de 800 emendas que resultaram na alteração substancial de mais de 100 dispositivos da CLT, a reforma trabalhista aprovada foi produto de
uma manipulação midiática.

A sua implantação em si constituiu um agravo à saúde mental do trabalhador. Pesquisas comprovam que os suicídios decorrentes do trabalho no Brasil tiveram como causa maior os momentos de crise econômica e as gestões neoliberais que privilegiam o lucro em detrimento da dignidade humana.
A manipulação midiática, por outro lado, levou os empregadores a pensarem que a partir de então poderiam produzir todos os tipos de sortilégios, desde o não pagamento de salários, até mesmo ao despedimento em massa de empregados, sem o respectivos pagamento das verbas rescisórias.

Atualmente, vivemos um quadro em que os trabalhadores têm receio de denunciar e propor ações por medo perder o trabalho e sofrerem retaliações. Estamos falando de medo, ansiedade, depressão, isolamento e suicídio. Por outro lado, as próprias modificações estabelecidas pela reforma
trabalhista possibilitam a pejotização e falsa autonomia, isso significa que um trabalhador empregado seja obrigado a constituir uma pessoa jurídica
unicamente para que preste os mesmos serviços, dessa feita sem receber seus direitos trabalhistas.

Isso é fraude e fraude pressupõe mentira e submissão a opressão. Tal prática fere a mobilização subjetiva do trabalhador e tem como
consequência ao trabalhador um grande sofrimento ético, além da perda da confiança em seu próprio gestor, tornado agora, seu maior algoz.
O contrato de trabalho intermitente é causa de depressão no Reino Unido onde é adotado sob o nome de Contrato a Zero Hora. O contrato é líquido,
inexistente e ineficaz. Ele só existe na cabeça do empregador, que sabe que a qualquer momento poderá chamar um exército de desempregados para
trabalhar. Para o empregado ele é invisível, pois ele sabe que existe, mas não é palpável, pois o tempo de espera é o condutor do contrato. Esse tipo
de contrato gera ansiedade e depressão, com agravamentos psíquicos ilimitados.

Isso sem falar na possibilidade de redução do intervalo intra-jornada e da contratação de jornadas 12×36 sem qualquer critério ou proteção. Ou
mesmo do tempo de exposição a condições insalubres, agora não mais delimitado pela lei, mas objeto de negociação entre as partes.
Todas essas modificações são causa de patologias sociais a exemplo da patologia da sobrecarga que leva o indivíduo a sofrer um desgaste físico e
psíquico sem precedentes, levando-o a um adoecimento psíquico gravíssimo, que se não tratado a tempo, poderá levá-lo à perda da própria
identidade, já que não conseguirá sequer trabalhar, quanto mais pensar e viver.

E por último, é imperioso noticiar que o Dr. René Mendes, conceituado médico do trabalho, levou ao público presente no 8º congresso de saúde
mental no trabalho a notícia de que um dos piores riscos a serem enfrentados não só pelos trabalhadores brasileiros, mas por toda a população, é a possibilidade de extinção do SUS.

Especificamente na vida da mulher trabalhadora, houve impacto da reforma?
A reforma trabalhista retirou conquistas sociais historicamente obtidas, à exemplo do intervalo de 15 minutos antes do início da jornada
extraordinária, ou mesmo da proibição do labor em condições insalubres para lactantes e gestantes, vinculando-as agora a apresentação de atestado
médico. É lógico que o medo da perda do emprego levará essas mulheres a jamais apresentarem atestado médico, até mesmo porque, pouquíssimas
trabalhadoras sabem do real risco que correm com determinada prestação de serviços. O resultado será uma série de adoecimentos e provavelmente um aumento de abortos espontâneos, além de fetos com degenerações físicas em decorrência de exposição a processos químicos e físicos de extrema gravidade.

Além da reforma trabalhista, a lei da terceirização ampla também pode mudar a dinâmica produtiva de forma a precarizar a saúde mental do trabalhador?
A terceirização inclusive da atividade – fim permitirá que uma empresa que terceirize todas as suas atividades, ou grande parte delas, estabeleça uma
organização do trabalho multifacetada e dividida facilitando assim a quebra da cooperação e solidariedade, os quais são imprescindíveis para a
composição da atividade deôntica, assim compreendida como a atividade propulsora de uma organização do trabalho equilibrada ecologicamente.
Por outro lado é fato que no Brasil as empresas terceirizadas não têm qualquer suporte econômico que garanta a viabilização do negócio, isso faz
com que elas deixem de pagar salários, verbas rescisórias e imponham aos seus trabalhadores condições indignas de sobrevivência, uma vez que
deixam também de cumprir normas de saúde e segurança do trabalho.

O que se vê hodiernamente é que a terceirizada na maioria da vezes impõe um modelo de contratação precarizante, fazendo assim com que os seus trabalhadores se sintam discriminados e desprotegidos. Maria da Graça Druck de Faria, pesquisadora com estudos em sociologia do trabalho afirma que terceirização é sinônimo de precarização. Tudo isso provoca uma cisão na saúde mental do trabalhador e na própria identidade coletiva da organização do trabalho, cindindo relacionamentos e estabelecendo comparações, discriminações e graves adoecimentos.

Por outro lado, a cooperação e solidariedade no ambiente de trabalho favorecem a saúde mental?
A cooperação e solidariedade aliada a confiança são imprescindíveis para a engrenagem de qualquer relacionamento, seja ele familiar, social, religioso
ou do trabalho. Para o trabalho, são as molas-mestres do equilíbrio ecológico. Assim é que a quebra desses vínculos por meio das novas gestões neoliberais
globalizantes faz com que o trabalho deixe de gerar prazer e realização, para gerar tão somente sofrimento e adoecimento.

 No futuro, é possível pensar em uma evolução da sociedade de forma que o avanço tecnológico, a inteligência artificial possam oferecer ao trabalhador um ganho em sua qualidade de vida no trabalho, como trabalhar menos horas para usufruir melhor o lazer e o descanso? Ou isso é mera utopia que jamais poderemos alcançar em razão da própria razão de ser do capitalismo?
O avanço tecnológico e a inteligência artificial, assim como o próprio fenômeno da globalização podem produzir dois efeitos, quais sejam, a
comunhão ou a exclusão. Estudos demonstram que atualmente prevalece-se a exclusão. Isso porque, as práticas de gestão defendidas pelo neoliberalismo requerem performances competitivas e produtivas à custa da quebra de vínculos primordiais para o ser humano, quais sejam, honestidade, verdade, união, respeito à diversidade, cooperação e solidariedade. O resultado final dependerá do movimento da própria humanidade, se em favor da vida ou da morte. As práticas estão postas, o capitalismo urge às nossas portas, mas quem decidirá se submeterá a ele ou não, seremos nós mesmos.

Façamos a nossa parte! Denunciemos a manipulação, a mentira, a exclusão. Construamos ao nosso redor um mundo novo de diálogo, participação,
inclusão, cooperação e solidariedade, e veremos então a realidade daquilo que era utopia. Tudo depende de nós. Tudo depende de cada um. O nazismo atingiu as proporções vistas porque encontrou terreno fértil para a proliferação do mal. O neoliberalismo poderá não obter a mesma sorte, se utilizarmos dos bens por ele mesmo disponibilizados e o utilizarmos para o bem.