Implantada para minimizar problemas de superlotação nos presídios, audiências de custódia geram polêmica e dividem opiniões

Wanessa Rodrigues

Apenas quatro dias após ser colocado em liberdade provisória, por meio de Audiência de Custódia, um morador de rua de Goiânia rompeu a tornozeleira eletrônica, estuprou uma mulher de 55 anos e roubou pertences e dinheiro da vítima. O acusado é multireincidente (ostenta cinco condenações transitadas em julgado), e ainda responde a outras ações penais por crimes de igual gravidade. Agora, pelos novos crimes cometidos, ele foi condenado a pena de 10 anos, 2 meses e 20 dias de reclusão, no regime inicial fechado, sem direito a recorrer em liberdade. A sentença foi dada pela juíza da 10ª Vara Criminal de Goiânia, Placidina Pires.

Casos como este acendem a polêmica sobre a efetividade das Audiências de Custódia, que dão aos presos em flagrante a chance de responder aos crimes em liberdade. Mesmo implantada para minimizar os problemas de superlotação nos presídios, a medida divide opiniões, justamente por permitir que potenciais criminosos continuem nas ruas. Em Goiás, esse tipo de audiência foi implantado em agosto de 2015. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as Audiências de Custódia resultaram na soltura, em média, de mais de 58% dos presos provisórios, embora mais de 60% deles já registrassem antecedentes criminais.

Juíza Placidina Pires, da 10ª Vara Criminal
Juíza Placidina Pires, da 10ª Vara Criminal de Goiânia

Para a juíza Placidina Pires, as audiências de custódia não se amparam em motivos convincentes. Ao contrário. Segundo a magistrada, possuem como indisfarçável propósito o esvaziamento de presídios, como medida equivocada de redução de gastos públicos. “Nessa perspectiva, é evidente que se constituem em mecanismo de estímulo à impunidade que assola o Brasil”, diz.  Ela salienta que, embora seja certo que as Audiências de Custódia não são as únicas responsáveis pelo aumento da violência, é certo também que possuem como objetivo a soltura em 24 horas dos indivíduos presos, através do incentivo de infundadas denúncias de tortura contra os policiais envolvidos nas prisões flagranciais.

Sob outro enfoque, a magistrada diz que essas audiências não se sustentam no Direito Brasileiro, mesmo depois da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI 5.240/SP. O fundamento dado para sua criação, bem como para afastar a sua inconstitucionalidade foi o de que o direito à apresentação do preso à autoridade estaria previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos, que prevê no artigo 7, item 5, que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais”.

Porém, Placidina salienta que, há muito tempo, já se cumpria tal norma internacional. Ou seja, já era realizado o controle de legalidade das prisões, uma vez que toda pessoa presa em flagrante delito era apresentada, imediatamente, ao Delegado de Polícia, autoridade que integra a denominada Polícia Judiciária.

A magistrada sustenta, ainda, que as referidas audiências no formato em que foram idealizadas baseiam-se em premissas equivocadas. Isto é, de que as demais carreiras jurídicas não têm se desincumbido a contento de suas funções no que diz respeito ao combate à tortura, e que somente o juiz estaria habilitado para essa missão. “Com esse propósito, as Audiências de Custódia também não me parecem eficazes. Primeiro porque os magistrados não possuem conhecimento técnico para detectarem lesões não aparentes, e segundo porque os juízes não participarão das investigações das denúncias feitas, as quais ficarão a cargo dos mesmos agentes do sistema de justiça criminal nos quais não se confia sequer para, no momento da prisão, apurarem os casos de tortura”, diz.

Inconstitucionalidade

A magistrada cita ainda a inconstitucionalidade da Resolução nº 213/2015 do CNJ, que, sob o pretexto de regulamentar, criou as Audiências de Custódia, e invadiu competência do Poder Legislativo da União para legislar sobre direito processual penal (artigo 22, inciso I, da CF), em verdadeira afronta ao princípio constitucional da separação dos poderes.

A magistrada explica que o CNJ, ao editar a inconstitucional Res. nº 213/2015, não se limitou a disciplinar a mencionada audiência para as hipóteses de prisão em flagrante, conforme decidido pelo STF na ADPF nº 347. Indo além, ampliou as hipóteses de seu cabimento, passando a exigir que sejam realizadas também nos casos de prisão preventiva, temporária e prisões definitivas, sem, ao menos, motivar e esclarecer as razões de tal postura.

Não obstante a inconstitucionalidade da regulamentação das Audiências de Custódia, a magistrada diz que a verdade é que elas “são impraticáveis, inúteis e lesivas ao interesse da população”. Segundo ela, a segurança pública no país está periclitante, e, ainda assim, insiste-se em direcionar o pequeno efetivo policial para a realização dessas audiências. “O que também consumirá o tempo dos servidores do Judiciário e juízes, com o consequente atraso no julgamento de inúmeros processos, inclusive criminais”, ressalta.

Eventual violência policial
Durante a Audiência de Custódia, o juiz poderá avaliar também eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades praticadas por policiais. O delegado Adriano Sousa Costa, titular da Delegacia Estadual de Repressão a Furtos e Roubos de Veículos Automotores (DERFRVA), salienta que é visível que a única função que sobrou para a “famigerada” Audiência de Custódia é para inquirir o preso acerca de eventual abuso policial sofrido.

E é neste ponto, segundo ele, que se encontra a problemática. Costa observa que as perguntas que são formuladas praticamente induzem o indivíduo preso a dizer ter sido vítima de violência policial. “Qualquer um que queira se livrar das garras da Justiça sente-se impelido a responder afirmativamente a quaisquer das perguntas acerca de violência policial”, diz.

Conforme o delegado, o suspeito vê ali uma possibilidade de saída do cárcere e nela se agarra. Costa diz que o suspeito não pensará duas vezes em imputar tal violência aos policiais que o prenderam, até porque o indivíduo enxerga que o responsável por sua captura é o grande responsável pelo seu atual sofrimento. “Não custa, então, destilar um pouco de mentira para realizar um tipo de vingança privada. Nem todos os suspeitos flagranteados mentem, é óbvio. Mas, contudo, os que mentirem, estarão amparados pelas tendenciosas perguntas contidas na Resolução 213 do CNJ”, acrescenta.

Desgaste
O problema disso tudo, conforme Costa, é que o desgaste desse jogo cai nas costas do policial, o qual frequentemente tem que constituir um advogado (às suas expensas) para se defender de tais acusações junto à Corregedoria ou mesmo na Justiça. “Nem me venham advogar que se o suspeito tiver mentido vai ser ele responsabilizado por eventual calúnia ou denunciação caluniosa. Um crime a mais ou a menos para ele tanto faz. Entretanto, essa desconfiança institucionalizada faz toda a diferença para o Policial, o qual dificilmente esquecerá esse constrangimento”, completa.

Sem dúvida, conforme observa Costa, esse procedimento faz com que o policial repense seu papel na sociedade e sobre sua atuação contundente junto à criminalidade, pois realizar uma prisão passou a colocar tal agente público em risco jurídico. “Não se nega que isso pode desmotivar alguns policiais, o que certamente trará consequências para todos nós”.

Sensação de insegurança
O promotor de Justiça Mozart Brum Silva diz que não vislumbra nenhum benefício na medida, ao contrário, salienta que serve para aumentar a sensação de insegurança, descrença na Justiça, desestímulo para os policiais que estão nas ruas enfrentando a criminalidade e, ainda, o desprestígio de uma carreira jurídica, ou seja, do Delegado de Polícia. Além disso, em sua opinião, as Audiências de Custódia não têm serventia para minimizar os problemas de superlotação nos presídios.

Conforme o promotor, o impacto na superlotação seria visto apenas caso seja escolhido para presidir os referidos atos processuais um magistrado com perfil marcadamente liberal, ou seja, que costuma soltar a grande maioria dos casos que lhe chegam para apreciar. Do contrário, com juízes “normais”, a quantidade de presos permaneceria a mesma, posto que as prisões sempre foram apreciadas pela Justiça em prazo de 24 horas e colocados em liberdade, de ofício, aqueles que fizessem jus, ou decretando a prisão preventiva aos demais, como ocorre na referida audiência.

“A audiência de custódia em si não tem o condão de soltar maior ou menor número de presos, trata-se de uma equivocada visão do instituto, provocada pela escolha de Juízes com perfis específicos, conforme acima mencionado”, diz. O promotor acrescenta que a  liberdade daqueles que merecem, por determinação legal, sempre foi concedida em prazos exíguos de ofício pelos magistrados, conforme previsto nos artigos 306, parágrafo 1º e 310, do Código de Processo Penal. Portanto, ressalta o promotor, a audiência de custódia também é desnecessária para a proteção de cidadãos de bem que eventualmente se envolvam em delitos.

Por outro lado, diz Mozart Brum, é evidente que a soltura indiscriminada produzida por profissionais com perfil marcadamente liberal, incentiva a prática de novos delitos. O promotor relata que já atuou em processo em que o sujeito foi preso por prática de roubo, ou seja, crime com violência e grave ameaça, e foi solto no mesmo dia na Audiência de Custódia, voltando a cometer outro delito da mesma espécie semanas depois. Ao ser ouvido em Juízo, no feito referente ao segundo roubo, no qual permaneceu preso por 60 dias até a audiência de instrução e julgamento, afirmou que somente cometeu este por ter achado fácil sair e não ter sequer conhecido a cadeia, contudo, ao conhecer a realidade do cárcere, não pretendia mais voltar ao crime.

Direitos e garantias fundamentais do investigado

Advogado Alex Néder
Advogado criminalista Alex Néder

Já o advogado criminalista Alex Neder, que preside em Goiás a Associação Brasileira dos Advogados Criminalista (Abracrim-GO),  acredita que as Audiências de Custódia são essencialmente, constitucionais, pois elas asseguram direitos e garantias fundamentais do investigado. E sua previsão legal encontra-se, desde muito, em tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Com efeito, o artigo 7º, 5, do Pacto de São Jose da Costa Rica ou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos que estabelece : “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”.

O especialista acredita que, dentro do contexto atual, de falência do sistema prisional brasileiro, as Audiências de Custódia, são mais benéficas do que prejudiciais. Embora seja um instrumento de primeiro mundo, aplicado em um país de terceiro mundo, que ainda não possui uma estrutura estatal para recepcioná-la por completo como deveria.

Neder ressalta que, com a audiência de Custódia, o juiz pode relaxar o flagrante, conceder a prisão provisória, ou decretar a prisão preventiva, e ou ainda aplicar uma das medidas constantes no artigo 319 do Código de Processo Penal. Isso possibilita abreviar prisões desnecessárias, que são a maioria. Contudo, é possível ocorrer equívocos e libertar pessoa que volte a cometer crimes. Porém, ele diz que isso também ocorria com o método anterior, quando se pedia o relaxamento da prisão ou liberdade provisória.

Campanha
Para Neder, há ausência de uma campanha de esclarecimento e conscientização da população para entender o que é a Audiência de Custódia, e que ela faz parte do direito de todo e qualquer preso, e não é ela que garante que o agente não vá voltar a cometer crimes. “Infelizmente, pela falta de esclarecimento, a população fica com o sentimento equivocado de que ela colabora com a impunidade. Na realidade, ela agiliza uma análise mais rápida do Poder Judiciário sobre as condições legais da prisão do investigado, nada mais”, completa.

Transformada em Lei
As Audiências de Custódia podem virar lei. Apresentado em 2011 por Antonio Carlos Valadares (PSB-SE), o Projeto de Lei do Senado 554/2011 estabelece o prazo máximo de 24 horas para um preso em flagrante ser apresentado ao juiz. O texto, que faz parte do grupo de propostas prioritárias definido pelos líderes partidários no início do ano e está pronto para votação em Plenário, legaliza o instituto da audiência de custódia, determinando a apresentação física do preso ao juiz e também a comunicação do ato da prisão, de imediato, pelo delegado ao Ministério Público, à Defensoria Pública — caso não tenha sido constituído advogado —, à família ou a pessoa indicada pelo preso.

Enquanto a proposta tramitava no Senado, onde foi analisada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), o CNJ se antecipou e lançou, em fevereiro de 2015, o projeto Audiência de Custódia, prevendo por ato administrativo a prática no país. Em seguida, editou a Resolução 213/2015, regulamentando a prática. O conselho se baseou em normas já previstas em pactos e tratados internacionais assinados pelo Brasil — que têm força de lei —, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José. E por meio de termos de adesão, conseguiu que os 26 estados da Federação e o Distrito Federal adotassem a medida.

Por acreditar que as Audiências de Custódia servirão de estímulo ao aumento da criminalidade, a juíza Placidina Pires defende a rejeição do referido Projeto de Lei, e espera que o STF reflua da liminar concedida na ADPF nº 347, e que o CNJ desobrigue os juízes de realizar as supracitadas audiências, pelo menos, enquanto não houver estrutura nas comarcas para tanto.

Leia aqui a opinião completa da juíza Placidina Pires.