O colega Marcelo Aith escreve, na coluna desta segunda-feira (3), sobre o fim da prisão especial para quem tem curso superior. Ele é advogado, Latin Legum Magister (LLM) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa – IDP, especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de Salamanca, mestrando em Direito Penal pela PUC-SP e presidente da Comissão Estadual de Direito Penal Econômico da Abracrim de São Paulo.
Leia a íntegra do texto:
O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria contra a prisão especial para quem é detentor de diploma de ensino superior no último dia 30 de março. Acompanharam o relator, ministro Alexandre de Moraes, os ministros Dias Toffoli, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, assim como as ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber, no sentido de que o benefício é inconstitucional por ferir o preceito da isonomia.
Não há dúvida de que se tratava de um odioso benefício concedido aqueles que possuem diploma de curso superior em detrimento da grande massa da população carcerária no Brasil. No entanto, não se pode olvidar que das mais de 700 mil pessoas presas no país, 8% são analfabetos, 70% não chegaram a concluir o ensino fundamental e 92% não concluíram o ensino médio. Não chega a 1% os que ingressam ou tenham um diploma do ensino superior.
Na verdade, a decisão do Supremo tirou o chamado “bode da sala”. Explico. Há uma lenda que uma família russa, quando do recenseamento anual, por conta do aumento do número de integrantes no núcleo familiar, foi postular a troca do imóvel que moravam por outro maior, com escopo de melhorar as condições de vida. O governo russo, detentor a época de todos os imóveis do país, ao invés de ceder ao pedido e proporcionar uma moradia melhor aos cidadãos que compunham aquele núcleo familiar, manteve o imóvel e acrescentou um bode para que a família cuidasse. No ano seguinte, na mesma época, a família voltou a pedir melhorias das acomodações, mas o governo não deu, no entanto retirou o bode da sala. A família saiu com as mesmas acomodações, mas feliz por não precisar cuidar do bode.
A decisão da Suprema Corte parece com a questão do “bode russo”, uma vez que aparenta ser uma decisão que iguala a todos os encarcerados, independentemente da sua condição social e escolaridade. Porém, faz vistas grossas para as grandes mazelas do falido sistema prisional brasileiro.
Embora a Constituição e as normas infraconstitucionais garantam a preservação dos direitos fundamentais das pessoas presas, a realidade carcerária é, em sua esmagadora maioria, absolutamente diversa.
O livro “A pequena Prisão”, escrito por Igor Mendes, um estudante de Geografia, preso durante as manifestações populares de 2014 contra o governo Dilma, reproduz, como nenhuma obra de criminologia foi capaz, a realidade da vida no cárcere e a supressão dos direitos das pessoas presas, que são estigmatizadas e reificadas, senão vejamos: “A galeria consistia em 14 celas individuais, muito altas e estreitas. A cela – ou “cubículo” – é a unidade básica da cadeia. No seu interior, havia um pequeno corredor, no fundo do qual ficava a comarca e no canto o boi, separado do restante do cubículo por uma parede de cerca de 1,5 metro. O boi, além do buraco no chão e um cano usado como chuveiro, tinha um pequeno tanque, propositalmente entupido pelos presos para armazenar água. Isso era necessário porque os guardas só abriam o registro duas ou três vezes ao dia, por dez minutos cada vez. De dois em dois dias, esse tanque devia ser esvaziado, pois do contrário ficava completamente infestado com larvas de mosquito (mosquitos que, aliás, eram um dos maiores inimigos dos presos naquele inferno). As paredes sujas no interior das celas, descascadas, tinham as cores azul e branco. Não havia, por parte da direção, qualquer preocupação com a limpeza das celas. Nos quarenta dias em que lá estive, apenas uma vez peguei em uma vassoura e, para varrer o chão, tinha que recorrer a uma camisa velha. Obviamente também não tínhamos acesso a desinfetante, água sanitária ou qualquer produto de limpeza, e mesmo a posse de um balde nos era negada. Como, por questão de segurança, não havia ralos nas celas, nem na galeria, lavar o chão era tarefa praticamente impossível. Para lavar as roupas, tínhamos que nos contentar com água e o sabonete ralo que nos forneciam, de modo que bastavam dois ou três dias para que uma camisa branca ficasse completamente cinza. Também não tínhamos acesso a espelho ou barbeador e cheguei a ficar várias semanas sem ver o meu rosto. Quando, finalmente, pude me ver, no banheiro do Tribunal, assustei-me diante da figura magra e maltratada refletida no espelho. Colchão nunca faltou na galeria B, mas quando cheguei à penitenciária, no princípio de dezembro, os presos das galerias do “miolo” dormiam no concreto (na “pedra”, como diziam), e só no princípio de janeiro vi chegar um novo carregamento de colchões. Também faltavam roupas: lembro-me do aspecto sombrio que tinham aquelas turmas, às vezes com uma centena de presos, entrando de cabeça baixa no presídio, sem camisa, apenas com a bermuda azul da SEAP, embaixo de gritos e pancadas”.
Esse dantesco estado de coisas é fruto da ideia, muito difundida entre aqueles que não conhecem a realidade do cárcere ou que tenham uma vocação punitivista, de que o condenado, por ter cometido um ilícito penal, deve experimentar um grau de sofrimento mais elevado do que as pessoas livres. Essa concepção decorre do princípio da less eligibility, surgido na Inglaterra, em 1834, pelo Poor Law Amendment Act, que consiste na ideia de que a situação no cárcere não poderia ser mais atrativa do que a situação dos que estão em liberdade.
Não se pode olvidar que o STF, analisando a medida cautelar em sede de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347 (MC), reconheceu o estado de coisas inconstitucionais do sistema carcerário brasileiro e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, editou a Resolução CIDH de 22 de novembro de 2018, no caso “Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho”, impondo ao Brasil que implementasse mecanismos ágeis e eficientes para resolver a questão da superlotação das prisões e a desumanidade do tratamento com as pessoas presas.
São duas importantes sinalizações no sentido do descumprimento, pelo Brasil, de regras mínimas de preservação dos direitos fundamentais das pessoas presas e desprezo pelo princípio da não discriminação. Mas o que foi feito de concreto? Há políticas públicas no sentido de minorar esse draconiano estado de coisas? Evidentemente que não há.
O relatório do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo escancara as mazelas do sistema penitenciário paulista. Foram inspecionadas 27 unidades prisionais, constatando problemas gravíssimos, tais como: a) superlotação; b) precariedade das estruturas físicas das construções, inclusive de falta de ventilação, infiltração, rachaduras; c) presença de insetos e outras pragas; d) falta de assistência médica; d) racionamento de água e de banho quente; e) limitação de banho de sol; f) falta ou limitação de fornecimento de material de higiene pessoal; g) falta de alimentação e; h) violação da integridade física e psicológica e as sanções coletivas.
Esse cenário medonho, selvagem, desumano, deplorável que estão os presídios paulistas, que se espraia por todas as unidades da Federação, são desconsiderados pelas autoridades públicas brasileiras, na medida em que dar condições dignas às pessoas presas não é uma ação popular, não rende votos. Pelo contrário, o político será tachado de “parceiro de bandido” e excomungado da vida pública como um se fosse um pária.
Decisões como a proferida pelo STF no sentido de afastar a prisão especial é jogar para a galera, mas é de nenhuma utilidade para a melhoria do estado de coisas inconstitucionais que vigora nos presídios do país.
Oxalá a Suprema Corte tenha a mesma coragem ao analisar o mérito da ADPF Nº 347 e reconheça o estado de coisas inconstitucionais e determine que sejam feitas políticas públicas concretas em prol dos seres humanos que estão a cumprir suas penas.