Quem gosta da feio, bonito lhe parece!

*Marcelo Bareato 

Há algum tempo tratamos, em nossos artigos, das mazelas do dia a dia, especialmente quando envolvem o Judiciário, que é nossa área de conforto e atuação.

Damos ênfase a esses acontecimentos porque são afetos a todos os cidadãos, já que não existe um único momento em nossas vidas que não tenhamos desdobramentos do direito, ditando as regras de nossa caminhada. Não por menos, frisamos a importância do participar politicamente do Estado, não de forma partidária, mas entendendo as nuances da política, vez que direito e política não se dissociam.

Dito isso, nossa proposta para hoje é tratar de dois temas corriqueiros, mas que, quando compreendidos na sua essência, pode fazer toda diferença na sua disposição e engajamento sobre tais assuntos. Assim, vamos aos julgamentos recheados de jurisprudências (quando o correto seria a utilização da legislação e doutrina) e o famigerado caso Valério Luiz.

Comecemos, pois, com o conceito de jurisprudência:

De acordo com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios – TJDFT:

Jurisprudência é um termo jurídico, que significa o conjunto das decisões, aplicações e interpretações das leis A jurisprudência pode ser entendida de três formas, como a decisão isolada de um tribunal que não tem mais recursos, pode ser um conjunto de decisões reiteradas dos tribunais, ou as súmulas de jurisprudência, que são as orientações  resultantes de um conjunto de decisões proferidas com mesmo entendimento sobre determinada matéria (extraído do site TJDFT).

De forma bem simples e descomplicada, a jurisprudência é a interpretação feita pelo Tribunal, em grau de recurso, especificamente sobre o caso hipotético de A e B. Se é sobre o caso concreto que envolveu A e B, é preciso que você entenda que só a eles interessa. Sendo assim, qual a razão dos juízes de conhecimento (ou primeira instância), em suas decisões, fazerem questão de apoiar as suas sentenças num repertório de jurisprudências de vários tribunais e não mencionar a lei ou os doutrinadores?

Simples! Estamos permitindo que criem um padrão “preguiçoso” e perigoso de válvula de escape, para não usar a lei e aproveitar julgamentos anteriores, dizendo ao cidadão que bate as portas do Judiciário que seu direito pouco importa, já que eles, os magistrados, estão decidindo dessa forma, nesse momento.

As consequências são devastadoras, na medida em que colocam a lei de lado, causam instabilidade jurídica e aniquilam direitos e, porque não falar, deveres (já que a todo direito corresponde um dever), ao não interpretar cada caso como sendo um caso único, padronizando, com isso, decisões desfocadas da realidade daquele caso, fazendo com que nós, os advogados, tenhamos que lançar mão de mais e mais recursos para tentar fazer valer os seus direitos.

Não por menos, em nossos recursos extraordinários para o STF (Supremo Tribunal Federal), solicitamos do órgão em questão, que uniformize a jurisprudência para que tenhamos um padrão a ser seguido. Todavia, caberia uma outra pergunta: para que precisamos passar por isso e gastarmos tanto dinheiro do contribuinte se temos a Lei?

A resposta está no contexto de que, se aplicássemos apenas a lei como nossa estrutura de estado determina, não teríamos espaço para decisões pautadas na moral e nos bons costumes que alguns juízes tanto precisam para ganhar popularidade. 

O caso Valério Luiz!

Trata-se de um homicídio ocorrido há dez anos. Segundo fontes jornalísticas, Valério Luiz era um radialista que foi morto na cidade de Goiânia, Estado de Goiás, quando saía da rádio onde trabalhava, mais precisamente em 5 de julho de 2012, supostamente, por críticas que fazia a diretoria do clube de futebol Atlético-GO. Esse caso, sem solução até o momento, ainda precisa de julgamento perante o júri popular.

Com essas notas introdutórias e depois de diversas tentativas em compor o plenário do júri de forma definitiva para levar a julgamento aqueles apontados como culpados, após quatro tentativas frustradas, no dia 13 de junho de 2022, teve início o tão esperado julgamento.

Ocorre que, nem bem começou e já foi interrompido novamente. No dia seguinte, 14 de junho, o julgamento voltou a ser suspenso com a destituição do plenário porque um estudante de direito, que compunha o corpo de jurados, teria passado mal no hotel onde estava hospedado com a finalidade de ficar incomunicável durante o julgamento, saído a noite e retornado para casa, o que tornaria parcial o julgamento e por esse motivo, carente de legitimidade.

Estranho, muito estranho na verdade, na medida em que muitos julgamentos por crimes dolosos contra a vida no Estado de Goiás são feitos sem qualquer cuidado, permitindo que jurados se falem, almocem com o Ministério Público, com o juiz, com as testemunhas, sem qualquer cerimônia, controle ou rigor legal. Então, por que esse julgamento deveria ser tratado de maneira diferente e ter o plenário destituído em razão do estudante que se mostrou intolerante a lactose no almoço do dia 13/06, passou mal ao comer uma lasanha e um estrogonofe e foi para casa se tratar?

Decorrência lógica da Constituição Federal, no seu artigo 5º, inciso XXXVIII, letra b, a incomunicabilidade está relacionada ao sigilo das votações e, por isso mesmo, nos dizeres de PACELLI, Eugênio: O sigilo das votações impõe o dever de silêncio (a regra da incomunicabilidade) entre os jurados, de modo a impedir que qualquer um deles possa influir no ânimo e no espírito dos demais, para fins da formação do convencimento acerca das questões de fato e de direito em julgamento (Curso de processo penal / Eugênio Pacelli. – 21. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2017. p.328).

Não por menos, o artigo 564, inciso III, letra j, do Código de Processo Penal, prevê como nulidade absoluta a quebra de incomunicabilidade.

Nesse ponto e para que fique mais fácil entender o procedimento no tribunal do júri, após o sorteio dos jurados que irão acompanhar o caso e decidir a vida do ou dos acusados, a regra é que cada um receba o resumo do processo, fique incomunicável e, se for necessário, que todos sejam alocados em hotel, em quartos separados, sem televisão, telefone fixo, celulares, computadores, jornais e revistas, sob a vigilância de oficial de justiça e força policial, para que a garantia de um julgamento totalmente imparcial e consciente por parte de cada jurado, possa indicar o rumo a que o acusado será submetido.

Como dissemos no tópico anterior, está na Lei e por conta disso, é a regra e deve ser seguida à risca! Mas, então por que não se segue regularmente a formalidade estipulada e por qual motivo esse julgamento é diferente?

Não se segue porque, por desconhecimento ou por ignorância aos dispositivos legais, permitimos que juízes e promotores manipulem a lei quando lhes for interessante e não houver um sistema de transparência dos atos, como por exemplo, um julgamento televisionado. A questão da exposição de um julgamento televisionado ou mostrado via YouTube é que, apesar da notoriedade que ambos poderão alcançar, advogados e outros profissionais do direito poderão apreciar os desdobramentos e tecer comentários sobre a condução do julgamento, expondo os erros e acertos.

Então, quando a mídia está a televisionar, a tendência é o cumprimento da regra para que as falhas propositais que um julgamento velado poderia conter, com graves consequências aos acusados e a população em geral, fiquem apenas no plano das ideias e não se materializem no decorrer do plenário.

Sim! Os prejuízos não são só para o acusado, mas para todo e qualquer cidadão, na medida em que, quando o direito expresso na lei não é cumprido, qualquer um pode julgar como bem interessa, atendendo a interesses e sentimentos pessoais (o que em nossa legislação configura crime de prevaricação previsto no artigo 319 do Código Penal), levando a inaplicabilidade do direito, a formação da jurisprudência, a instabilidade jurídica e, por consequência, quando você precisar do direito para atender aos seus interesses legítimos, talvez não consiga fazer com que seja aplicado frente aos usos e costumes errados que foram se solidificando durante anos (em Direito Penal, usos e costumes não revogam a norma, mas a colocam em desuso).

O caso Valério Luiz e seu julgamento é diferente porque têm advogados particulares habilidosos, que cobram mais caro que o normal em razão do conhecimento adquirido ao longo dos anos de trabalho, que não se submetem aos erros e fazem com que a lei seja aplicada nos exatos limites daquilo que está determinado, enquanto outros imaginam precisar do juiz e promotor em outros processos, esquecendo-se de que, para o Judiciário, todos, juízes, promotores e advogados, ocupam o mesmo patamar de igualdade e necessidade para um processo justo e seguidor dos princípios e preceitos constitucionais.

Finalmente, com essas observações de hoje, nossa esperança é que nasça no íntimo de cada um dos nossos Seletos Leitores, o desejo pelo conhecimento jurídico, por cobrar os seus direitos daqueles que ganham muito bem para aplicá-los (juízes), fiscalizá-los (promotores) ou intermediá-los junto ao Estado (advogados), na perspectiva de que o comum e ilegal que conhecemos e achamos o certo, seja banido do nosso dia a dia e, porque não dizer, no afã de que possamos abandonar a máxima QUEM GOSTA DO FEIO, BONITO LHE PARECE e, de fato, apreciar a beleza e segurança que existem no direito conhecido e estabilizado numa sociedade com cultura jurídica e prosperidade.

*Marcelo Bareto é advogado criminalista com ênfase no Direito Penal Econômico, doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial e Execução Penal na PUC/GO, Conselheiro Nacional da ABRACRIM, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, membro da Coordenação de Política Penitenciária  da OAB/Nacional gestão (2022/2025), Coordenador da subcomissão de Direitos Humanos para o Sistema Prisional  da OAB/Goiás (gestão 2022/2024) e Coordenador da Comissão Interestadual de Acompanhamento da Saúde no Sistema Prisional junto ao Conselho Municipal de Saúde de Aparecida de Goiânia/GO, Membro do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura/GO entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).