Sobre o aborto e o Tribunal da Opinião: as faces da desumanidade

*Eduardo Perez Oliveira

O presente artigo acadêmico tem por objetivo fomentar reflexões tomando por base caso hipotético baseado naquele envolvendo o caso da menina de onze anos de idade que engravidou vítima de estupro e que teve o direito de abortar supostamente negado pelo Judiciário.

A ideia apresentada é demonstrar como alguns processos são altamente complexos. Por exemplo, quais as hipóteses permitidas de aborto? Existe limite de período da gestação para isso? Há diferença entre aborto e interrupção de gestação? Se você tem muitas certezas sobre a situação, este artigo é pra você.

Em estrita observância ética não emitirei opinião sobre o caso concreto que está em julgamento, nem sobre a conduta da magistrada, da promotora de Justiça, do advogado ou de qualquer envolvido, seja nos vídeos divulgados, seja nos autos. A intenção é estimular a reflexão sobre um assunto tabu que merece debates, e não dogmas.

Apenas a título de comentário, é preciso reputar como ilegal a conduta de divulgar o vídeo de entrevista da criança em processo que tramita sob sigilo. O motivo é óbvio e o resultado fala por si só: a menina se tornou uma bandeira ideológica pró e contra aborto, sem que haja efetiva preocupação com seu bem-estar. A pessoa que vazou o vídeo para a imprensa, convencida de que estava diante de um ilícito, poderia ter feito a denúncia pelos caminhos legais.

Não é a primeira vez que conteúdos sigilosos de casos polêmicos são enviados para a imprensa em vez de encaminhados para os locais responsáveis por apurar as denúncias.

Quero crer que a plêiade de pessoas que estão opinando a respeito não conhecem os autos e o que neles é discutido, e, ainda assim, de forma afoita, acorrem às redes sociais para participar da polêmica.

Para manifestar-se com conteúdo sobre qualquer assunto é preciso dele conhecer. Essa postura é ainda mais vergonhosa vindo de quem estuda Direito ou trabalha na área jurídica, pois abandona a razão pela paixão, o bom senso pela necessidade de falar, a prudência pela sinalização de virtude e a vontade de “pertencer” a algum movimento, seja pró ou contra algo.

Feitas as observações, passemos a analisar algumas hipóteses.

Para exemplificar, consideraremos dados hipotéticos que apenas se assemelham ao caso concreto, mas que não se confundem com ele: menina de onze anos de idade foi estuprada e, ao procurar o hospital para fazer aborto, teria o pleito negado em razão da gestação encontrar-se em 22 semanas. O promotor de Justiça seria contrário ao pedido e o juiz teria indeferido.

Conforme a legislação e a jurisprudência brasileiras, são três as hipóteses autorizativas de aborto: se a gravidez põe em risco a vida da gestante; se a gravidez é decorrente de estupro e há consentimento da gestante ou, se incapaz, de seu responsável legal; e no caso de feto anencefálico.

Nos dois primeiros casos a previsão está no art. 128 do Código Penal. A terceira hipótese é fruto de decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 54, que, por oito votos a dois, autorizou o fim da gravidez de feto anencefálico. O argumento de sete dos oito ministros que votaram favoravelmente a essa tese seria o de que, em razão da anencefalia, não haveria possibilidade de vida fora do útero, de modo que não seria propriamente um aborto, tornando-o um crime impossível (1).

A hipótese que examinamos não é de anencefalia e poderia se encaixar em uma ou ambas as previsões do art. 128 do CP: risco para a vida da gestante e gravidez decorrente de estupro, com consentimento da gestante ou de seu responsável.

Note-se que quando se trata de risco de morte da gestante a lei não estabelece a necessidade de seu consentimento para o aborto. Contudo, parece decorrer logicamente do ordenamento jurídico o direito de optar por não se tratar de determinada moléstia ou não ser submetido, por exemplo, a ressuscitação ou ser mantido vivo por aparelhos. Trata-se de direito de recusa a tratamento médico, que abandona o modelo paternalista e assume a autonomia do paciente.

No Código Civil, por exemplo, o art. 15 prevê que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.

A esse respeito, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução n. 2.232/19 que versa sobre a recusa terapêutica por paciente e objeção de consciência na relação médico-paciente (2).

A aludida norma prevê a recusa terapêutica como um direito do paciente, desde que esteja devidamente informado das consequências previsíveis de sua escolha, e que seja maior de idade, capaz e esteja lúcido, orientado e consciente quando da decisão. Tal recusa não deve ser aceita quando, diante de risco relevante à saúde, o paciente for menor de idade ou adulto que não esteja no uso de suas faculdade mentais, ainda que representado ou assistido por terceiros.

Também não pode ser aceita a recusa terapêutica que caracterize abuso de direito, isto é, nas hipóteses que coloquem em risco a saúde de terceiros ou se trate de doença transmissível ou condição que exponha a população a risco.

No caso da gestante ainda, “a recusa deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto”.

Há uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal na Justiça Federal, autos n. 5021263-50.2019.4.03.6100, em grau de recurso, sob a alegação de que a resolução do CFM contrariaria as políticas de humanização de parto. Embora tenha sido deferida a tutela de urgência, a sentença da juíza Federal Rosana Ferri julgou improcedente a pretensão ministerial (3).

Segundo a sentença, a defesa do CFM se deu no sentido de que a norma garantiria os direitos do nascituro, conforme o art. 2° do Código Civil, e buscaria a preservação da vida como direito fundamental, conforme arts. 5° e 227 da Constituição Federal. A resolução não colocaria o direto do nascituro antes do da gestante, mas observaria que ambos precisam ter seus direitos protegidos, com a distinção de que “o feto carece de manifestação de vontade; não tem desenvolvimento mental e cognitivo completo”, trata-se de “um ser em formação e que precisa de proteção”. A recusa de tratamento pela gestante, portanto, constituiria um abuso de direito em relação ao feto, a depender do caso concreto.

Na ação, o MPF teria falhado em demonstrar que cesarianas forçadas seriam condutas médicas frequentes, entendendo a magistrada que o dispositivo atacado em verdade garante o direito à vida do nascituro, e que a recusa de tratamento pode ser múltipla, inclusive gestante dependente química que negasse cuidados médicos e colocasse a vida do feto em risco. Para a juíza, “retirar do profissional a possibilidade de realizar uma intervenção sem o respaldo de uma norma expressa, pode inibir eventuais atitudes que salvariam a vida de um bebê”.

Como já tive oportunidade de citar em outro artigo, conheço o caso de uma mãe que recusou tratamento médico, no caso quimioterapia, mantendo a gestação com risco à própria vida para que a sua criança não viesse a ser afetada e pudesse nascer. Ambas hoje estão vivas e bem.

Assim, é direito da gestante também escolher interromper ou não a gravidez em caso de risco à própria vida, embora a lei expressamente não o diga.

Na segunda hipótese do art. 128 do Código Penal, a de gravidez decorrente de estupro, é direito da gestante maior decidir pela interrupção. No caso da incapaz, tal direito competiria ao representante legal. Entendo que mesmo nesse caso é preciso que a norma seja interpretada com cautela. O Código Civil assevera que são absolutamente incapazes os menores de 16 anos (art. 3°), e relativamente aqueles entre 16 e 18 anos, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos ou aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade (art. 4°, I a III). Existe ainda toda uma miríade sobre a (in)capacidade da pessoa natural. A leitura fria da lei permitiria a interrupção, ou não, a depender exclusivamente da vontade do representante legal, o que não se afigura correto, devendo analisar a capacidade decisória da gestante no caso concreto a fim de que ela possa ser ouvida e seu interesse levado em consideração.

Tratando-se de criança ou adolescente tal oitiva não é novidade, embora não relacionado à gestação, estando prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.069/1990, v.g., art. 28, §1° e art. 100, parágrafo único, XII, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão.

Na situação hipotética analisada, contudo, tendo a permanecer com aqueles que consideram que uma criança de 11 anos não possui maturidade ainda para compreender totalmente as consequências do ato, embora deva ser ouvida. E esse reconhecimento de imaturidade é um dos elementos que deveria ser levado em consideração também, por exemplo, quando se fala em diminuição de menoridade penal e na discussão que envolve a disforia de gênero infantil. Ou a imaturidade, isto é, a incapacidade de se situar diante de determinadas situações e entender suas implicações e consequências para si, é um fato, e deve ser ponderado, ou não é. Claro que esse artigo busca apenas gerar debates, cabendo aos profissionais das várias áreas estudarem o tema com base nos fatos e na realidade. E esse tipo de situação deveria suscitar também essas discussões paralelas, inclusive para demonstrar que nem todos os que estão militando a favor desta ou daquela posição o fazem visando o interesse concreto da criança, e sim a defesa da ideologia que, como se sabe, admite contradições, quando não é inteiramente formada delas.

Não é só a questão do estupro a ser considerada, uma criança gestante também pode correr risco de morte com a gestação, o que depende de avaliação médica.

Outro ponto a ser ponderado é até que momento da gestação o art. 128 do CP autoriza o aborto ou a interrupção da gravidez.

Os positivistas pontuais dirão que, como a lei não estabelece prazo, o aborto ou interrupção de gestação poderia ocorrer a qualquer tempo antes do nascimento.

Digo positivista pontual porque é comum que os auto denominados juristas, especialmente os de internet, se valham, para defender suas ideologias e interesses, ora da letra da lei, ora da jurisprudência, ora do ativismo e até da política, religião e pautas sociológicas, para não dizer quimeras. A única coerência que se vê nesses casos é que existe a defesa intransigente do seu ponto de vista naquele caso específico, que pode inclusive ser contraditório com outro ponto de vista que tenha manifestado em oportunidade diversa, mantendo de estável apenas a intolerância com quem pensa diferente.

Afirmo há tempos que trocaria facilmente uma centena de livros de doutrina jurídica na graduação em Direito por um único que ensinasse lógica e debate, de forma que os interlocutores teriam condições de entender o que é um argumento válido e escapar das falácias que hoje predominam.

Aquele que argumenta que a lei deve ser seguida de forma literal sempre deve manter em qualquer ocasião a mesma regra hermenêutica, o que se sabe impossível, pois já tentada no passado (Napoleão que o diga). A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro é um exemplo de norma que fixa parâmetros hermenêuticos para o juiz e da qual se extrai que a interpretação literal nem sempre é a adequada ao caso. O próprio conceito de “aborto” exige uma interpretação.

Portanto, é preciso entender quais são os argumentos pró e contra o aborto na situação hipotética. No caso do estupro, um argumento é a existência da lei, claro, que por sua vez se ampara em outros, como o da gravidez ser fruto de uma violência, logo, imposta à vítima, resultar de uma situação atroz e degradante que não deveria ser suportada por quem a sofreu, a inexistência de vínculo emocional entre mãe e nascituro etc. Parece bastante óbvio entender porque uma mulher decidiria não levar adiante uma gestação fruto de violência sexual.

Mas volta-se para a pergunta feita: esse aborto ou interrupção em caso de estupro pode ser feito a qualquer tempo?

Pode-se argumentar que sim, pelos motivos elencados, somando-se ao fato de que está se impondo uma carga insuportável para a gestante, obrigada a reviver diariamente em sua gestação o trauma da violência sofrida, além de riscos que já foram apontados.

Em contraposição, e não vou discutir aqui o momento de geração da vida em suas várias teorias, pode-se argumentar que a partir de determinado momento o feto já tem viabilidade extrauterina.

Com 20 semanas de gestação o feto já pode escutar sons do mundo exterior e tem impressões digitais, além da diferenciação genital, e com 24 semanas o nascituro já passa a abrir os olhos e começa a respirar (4). O bebê prematuro mais jovem do mundo nasceu com 21 semanas e dois dias (5).

Em um material de obstetrícia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, provavelmente de 2012, define-se o aborto como “a interrupção da gestação antes do início do período perinatal, definido pela OMS (CIE 10) a partir de 22 semanas completas (154 dias) de gestação, quando o peso ao nascer é normalmente de 500 g” (6). Definição similar extrai-se da cartilha de Atenção Humanizada ao Abortamento de 2005, do Ministério da Saúde, a qual diz que o aborto é “a interrupção da gravidez até a 20ª-22ª semana e com produto da concepção pesando menos que 500g” (7).

É o mesmo conceito utilizado por Lorena Ribeiro de Morais em seu artigo de 2008, “A legislação sobre o aborto e seu impacto na saúde da mulher”, a qual assevera que “do ponto de vista médico, aborto é a interrupção da gravidez até 20ª ou 22ª semana, ou quando o feto pese até 500 gramas ou, ainda, segundo alguns, quando o feto mede até 16,5 cm” (8).

Na cartilha Direitos Reprodutivos: Aborto Legal, elaborada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo no Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, em 2018, e disponível na página do Ministério Público do Estado de São Paulo, consta que “aborto é o processo de interrupção da gestação de fetos de até 20 ou 22 semanas, com peso previsto de até 500 gramas, sendo que a interrupção da gestação após esse período se chama antecipação do parto” (9).

A mesma cartilha diz que “nos casos de violência sexual, o aborto é permitido até a 20ª semana de gestação, podendo ser estendido até 22 semanas, desde que o feto tenha menos de 500 gramas”. Menciona ainda que nos casos de anencefalia não existe idade fetal para o abortamento, mas que passado o prazo de “20 ou 22 semanas de gestação, ou peso fetal maior do que 500 gramas, esse procedimento deve ser realizado em hospital que possua estrutura de maternidade”.

Apenas para reforçar esse entendimento, em reunião de sua Câmara de Consultas, em 7 de fevereiro de 2020, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) respondeu à consulta n. 197.356/19 versando sobre a necessidade de emissão de declaração de óbito para o natimorto a partir de qual período gestacional (10).

O CREMESP, após citar diversas normativas que fundamentam seu entendimento, assentou, entre outros pontos, que:

D – O produto da concepção falecido intra útero, cuja idade gestacional complete 20 semanas ou superior, peso corporal 500 g ou superior, meça longitudinalmente do vértice craniano ao calcanhar de 25 (vinte cinco) cm ou superior, após separado do corpo materno, considerar-se-á Nascido Morto e terá emitida a Declaração de Óbito para obtenção da Certidão no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais;

E – O produto da concepção falecido intra útero cuja idade gestacional não complete 20 semanas, peso abaixo de 500 g, meça longitudinalmente do vértice craniano ao calcanhar, menos que 25 (vinte e cinco) cm, após separado do corpo materno, considerar-se-á Óbito fetal.

Fato é que não existe previsão legal que estabeleça até quando é possível o aborto ou a interrupção da gravidez, de modo que é preciso interpretar a norma a partir de outras fontes. Se considerado o termo aborto em sentido literal, recorrendo-se à definição médica de ciência como forma de interpretar a norma, seria preciso verificar o número de semanas de gestação até onde a suspensão seja considerada aborto e a partir do qual se torna interrupção. Seria igualmente necessário considerar se o termo aborto deve abranger a interrupção de gestação ou deve ter interpretação restritiva.

Com base nas fontes apresentadas, a princípio poder-se-ia concluir que, grosso modo, após a 20a ou 22a semana, com 500 gramas ou mais de peso, a suspensão do processo de amadurecimento do feto não se pode chamar de abortamento, mas de interrupção de gestação, e o documento a ser emitido é de nascido morto.

Utilizando tais fundamentos como base, se pode contra-argumentar ao aborto ou interrupção que, segundo o art. 5°, caput, da Constituição Federal e o art. 2° do Código Civil, o nascituro viável tem direito à vida. Novamente, o fundamento é legal, mas a lei protege aqui valores certos e se baseia em fatos naturais, assim como a que assegura o aborto decorrente de estupro o faz. Não vale pelo simples texto, mas pelo contexto.

Está-se diante de uma ponderação de interesses da gestante e do nascituro, semelhante ao realizado na ação civil pública em que questionada a Resolução CFM n. 2.232/19, mas que pode chegar a resultados diversos em cada caso concreto.

Por exemplo, ao argumento de que o corpo é da mulher e ela pode decidir sobre a gestação ou não, pode-se contrapor, grosso modo, que o feto é formado por 46 cromossomos, em regra, 23 do óvulo da mãe, 23 do esperma do pai. Além disso, o nascituro não é parte do corpo da mulher, mas dependente dele.

Toda hipótese deve ser debatida sem paixões e de maneira fundamentada. Será que, em uma situação na qual não houvesse risco de vida para a gestante e o feto tivesse viabilidade extrauterina, seria defensável a qualquer momento o aborto ou a interrupção da gestação decorrente de estupro? Seria possível a interrupção com sete ou oito meses de gestação se somente nesse momento a gestante se decidisse?

Não estou defendendo nenhuma posição. O objetivo é trazer um pouco de reflexão a um debate tormentoso no qual entendimentos peremptórios servem apenas como máquina de moer gente.

A situação em análise traz o interesse não só da gestante, mas também do nascituro em um cenário extremamente complexo. A começar do fato de que a mulher foi vítima da violência e não é um ser humano em potencial, mas uma pessoa viva cujos direitos mais básicos foram violados e agora pode ter também violado o direito de decidir sobre seu destino e suas escolhas. Podemos afirmar com certeza que não há interesse primário de movimentos ideológicos, partidos políticos, líderes religiosos, associações etc. Pelo contrário, dar primazia a discursos ideológicos em prejuízo do humano é ferir no âmago o conceito de dignidade kantiano, pois o torna meio para um fim.

Para acrescer como argumento, o nascituro com possibilidade de vida extrauterina gerado da relação de violência sexual não teve opção sobre ser gerado, nem tem condições de exprimir sua vontade. O que se tem como certo em ordenamentos jurídicos estáveis é que a vida é um valor autoevidente e presume-se a seu favor. Se, como visto, a partir de determinado período da gestação estabelece-se tal viabilidade, não seria equivalente a homicídio interromper o processo de crescimento de um nascituro viável em tais casos, em vez de optar-se por parto antecipado ou outra medida? E, mesmo que se considere um ato equivalente a homicídio, seria legalmente vedado se ponderado os interesses da mulher vítima da violência?

Por outro lado, como ficaria a estrutura psicológica da mãe nessa situação, obrigada a aceitar a gestação? A saúde não é apenas física, como se sabe. A mulher sexualmente violada, logo, inocente, deveria ser obrigada a aceitar o crescimento dessa criança ao não optar pelo aborto antes da 20a semana? A gestação em meninas da idade da hipótese analisada é de fácil verificação? Ela ou seu responsável teve acesso à informação sobre direito ao aborto? Negar-lhe tais informações sobre seus direitos, ou alegar falsamente sua inexistência, ou, ainda, agir de forma a dificultar o acesso aos meios de saúde para o aborto ou interrupção não seria elemento a ser ponderado?

O que tenho visto amiúde são posições peremptórias no sentido de que qualquer posição que negue a interrupção da gestação (não mais aborto propriamente) seria errada. Como visto ao longo do artigo, essa conclusão é irracional porque não pondera uma série de outros fatores e interesses.

É compreensível que quando se fale em estupro haja um corte no discurso racional, uma vez que se trata de crime dentre os mais repudiados e asquerosos, e absolutamente indefensável. Mas não é o estuprador quem está sendo julgado na hipótese, e sim a situação envolvendo os direitos da mulher gestante, vítima da violação, e do feto, fruto desse crime.

Não seria importante aproveitar a oportunidade para direcionar essa indignação para exigir penas mais gravosas para estupro? Mais anos de prisão e impossibilidade de progressão, por exemplo. Há países que tratam predadores sexuais com castração química. O Departamento de Justiça dos Estados Unidos possui, desde 2005, um site com o registro público de predadores sexuais que pode ser consultado por qualquer pessoa. Fiz o teste e funciona: tem foto, idade e endereço do criminoso que cumpriu pena por esse tipo de crime e que permite que a população de determinada região fique alerta (11). No Brasil, porém, defende-se o direito ao esquecimento.

Percebo que existem argumentos para ambos os casos: para a mulher que fora vítima do estupro e agora carrega um fardo que lhe foi imposto, com severos danos psicológicos e físicos, e para a tutela de interesse do nascituro viável fora do útero materno, que não escolheu ser gerado na situação asquerosa de um estupro e que não tem qualquer culpa sobre o ato.

Depois de quase doze anos de Magistratura posso dizer que para algumas situações estou preparado, para outras nunca estarei, ainda que se repitam várias vezes. Porque o dia em que eu não sentir mais o peso da caneta ao decidir vidas humanas terei me tornado um monstro.

Espero não ter que me deparar com um caso concreto como da situação hipotética analisada. Não tenho resposta pronta para isso e acredito que nenhuma pessoa mentalmente saudável tenha. Também penso que um juiz que decida uma situação dessas, qualquer que seja a decisão, será assombrado por seus resultados.

A importância de debater tais temas é a mesma do exercício filosófico dos debates éticos: permite que vários ângulos e interesses sejam considerados em tese para que, caso venha a ser necessário aplicar esse conhecimento na prática, se esteja mais preparado para decidir.

Somente uma alma sebosa assinaria uma decisão desse jaez, pela interrupção ou não, sem qualquer remorso ou drama de consciência. A sanha totalitária dos juízes do tribunal da opinião de impor aos outros suas ideologias à força do grito, pró ou contra, é fruto ou da ignorância sobre o peso da caneta de um magistrado ou é pura maldade que se quer travestir de virtude.

O debate é importantíssimo. As decisões judiciais devem ser discutidas, especialmente quando se trata de um tema complexo, tormentoso e que envolve a vida de tantas pessoas em um país com mais de 200 milhões de habitantes. Mas um debate é feito de argumentos, não de dogmas, ofensas e ameaças.

Piero Calamandrei, o famoso advogado italiano, em sua obra “Eles, os juízes, vistos por um advogado” descreve a pressão sobre o magistrado:

Conheci um químico que, quando no seu laboratório destilava venenos, acordava as noites em sobressalto, recordando com pavor que um miligrama daquela substância bastava para matar um homem. Como poderá dormir tranqüilamente o juiz que sabe possuir, num alambique secreto, aquele tóxico subtil que se chama injustiça e do qual uma ligeira fuga pode bastar, não só para tirar a vida mas, o que é mais horrível, para dar a uma vida inteira indelével sabor amargo, que doçura alguma jamais poderá consolar? 

E para demonstrar a importância da cultura geral e seu papel na reflexão, em contraposição a uma sociedade altamente técnica e utilitarista, lembremos que, n’O Senhor dos Anéis, de Tolkien, Gandalf diz a Frodo quando este desejara a morte de Gollum:

Ouso dizer que sim. Muitos que vivem merecem a morte. E alguns que morrem merecem viver. Você pode dar-lhes vida? Então não seja tão ávido para julgar e condenar alguém à morte. Pois mesmo os muito sábios não conseguem ver os dois lados.

E quando Frodo diz que os terríveis eventos que estava a vivenciar não tivessem acontecido em sua época, Gandalf responde:

— Eu também (…) Como todos os que vivem nestes tempos. Mas a decisão não é nossa. Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado.

Ao juiz não é dado escolher as causas que julgará. A ele é dado apenas decidir em conformidade com o ordenamento jurídico, mas não como mero repetidor da lei. Alguns processos realmente gostaríamos de não julgar, e às vezes podemos recorrer à suspeição quando nos sentimos incapazes da imparcialidade.

De coração, não sei como eu decidiria em uma situação dessas. Teria que refletir muito, e rápido, porque a gestação não espera, e talvez sempre carregasse comigo a íntima convicção de que poderia ter feito melhor.

O que eu peço é que quem estiver disposto a debater o tema o faça com argumentos, com educação, disposto a ouvir o outro lado, e não com ofensas, memes e ameaças, tendo em vista o interesse real de pessoas que existem, e não de ideologias, quaisquer que elas sejam, e as contradições nefastas que as sustentam.

É um exercício para a vida inteira. Você é capaz disso?

*Eduardo Perez Oliveira é juiz de Direito

Referências:

(1) https://www.conjur.com.br/2012-abr-12/supremo-permite-interrupcao-gravidez-fetoanencefalo

(2) https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-2.232-de-17-de-julho-de-2019-
216318370

(3) https://portal.cfm.org.br/wp-content/uploads/2021/05/SENTENCA-5021263-
50.2019.4.03.6100-MINISTERIO-PUBLICO-FEDERAL-X-CONSELHO-FEDERAL-DEMEDICINA-RESOLUCAO-CFM-No-2232.2009-1.pdf

(4) https://www.betterhealth.vic.gov.au/health/healthyliving/pregnancy-week-byweek#week-20

(5) https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/06/20/mais-jovem-bebe-prematuro-asobreviver-no-mundo-comemora-primeiro-aniversario-nos-eua.ghtml

(6) http://www.me.ufrj.br/images/pdfs/protocolos/obstetricia/abortamento.pdf

(7) https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_abortamento.pdf

(8) MORAIS, Lorena Ribeiro de. A legislação sobre o aborto e seu impacto na saúde da
mulher. Revista Senatus, v. 6, n. 1, p. 50/58, maio 2008. Disponível em:
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/131831/legisla
%C3%A7%C3%A3o_aborto_impacto.pdf?sequence=6

(9) http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/
bibli_servicos_produtos/BibliotecaDigital/BibDigitalLivros/TodosOsLivros/Aborto_Legal.pdf

(10) https://www.cremesp.org.br/?
siteAcao=Pareceres&dif=a&ficha=1&id=16570&tipo=PARECER&orgao=%20Conselho
%20Regional%20de%20Medicina%20do%20Estado%20de%20S%E3o
%20Paulo&numero=197356&situacao=&data=13-02-2020

(11) https://www.nsopw.gov/