O direito de vista e retirada de autos judiciais físicos para resposta à acusação no processo penal

*Roberto Serra da Silva Maia

No processo penal, quando o Ministério Público apresenta uma acusação (denúncia) face à determinada pessoa, após o seu recebimento, o juiz determinará a citação do acusado para apresentar uma “resposta à acusação” no prazo de 10 dias, segundo estabelece o art. 396, do Código de Processo Penal (CPP).

Essa resposta é, pois, a primeira manifestação da defesa no processo, oportunidade em que poderá o acusado “arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua intimação, quando necessário” (art. 396-A, CPP).

Constituição Federal (CF), por sua vez, garante aos litigantes e aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, conforme art. , inciso LV. E no processo penal, mais do que em qualquer outra seara, onde está em jogo a liberdade do acusado ou até o estigma causado por uma eventual condenação, exige-se um rigor adicional na observância deste dispositivo constitucional.

Sobre a defesa no processo penal, o art. 261, do CPP, impõe que “nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”, isto é, a lei obriga o exercício da defesa técnica, por profissional habilitado (constituído ou nomeado). E na esfera penal há uma necessidade de efetividade do advogado no sentido de assistir o acusado; tanto, que o parágrafo único do art. 261 do CPP exige que a defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, seja sempre exercida através de manifestação fundamentada. Não é por outro motivo que a Súmula nº 523, do Supremo Tribunal Federal (STF), estabelece que “no processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta”.

Como corolário do preceito constitucional (art. 5º, LV, CF), o art. 7º, inciso XV, da Lei n. 8.906/94, garante o direito (prerrogativa) do advogado em “ter vista dos processos judiciais ou administrativos de qualquer natureza, em cartório ou na repartição competente, ou retirá-los pelos prazos legais”. O acesso aos autos de processos judiciais ou administrativos – gênero do qual são espécies o direito de vista e retirada de autos –, portanto, é direito inviolável do advogado, para que possa exercer livremente a profissão no interesse de seu constituinte, e deriva dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

Ocorre que, na prática, um dos maiores obstáculos que o advogado enfrenta no exercício da defesa técnica, diz respeito à limitação de acesso pleno aos autos judiciais criminais físicos – que ainda não são eletrônicos – impostos por alguns juízes, principalmente quando o feito envolve vários réus em “concurso” (art. 29, CP), “associação” (art. 288, CP) ou “organização criminosa” (Lei 12.850/2013).

O fundamento judicial mais utilizado para negar a retirada dos autos do cartório ou da secretaria, pelo prazo legal, para apresentação da “resposta à acusação”, baseia-se no fato de os acusados possuírem “prazo comum” para tal finalidade. Neste caso, de uma maneira geral, os magistrados se utilizam subsidiariamente, por exemplo, do art. 107, § 2º, do Código de Processo Civil (CPC) para entender que, “sendo o prazo comum às partes, os procuradores poderão retirar os autos somente em conjunto ou mediante prévio ajuste, por petição nos autos”; ou mesmo autorizam apenas a chamada “carga rápida”, na forma do art. 107, § 3º, do CPC.

No entanto, recentemente, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, no julgamento do Habeas Corpus (HC) n. 5296710.26.2019.8.09.0000, abriu um precedente importante a ser observado na fase da “resposta à acusação”, ao garantir o direito de vista e retirada de autos judiciais criminais físicos em caso contendo vários acusados e defensores distintos. Segue trecho da ementa do decisum:

HABEAS CORPUS. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. TENTATIVA DE PECULATO. DECISÃO QUE LIMITOU O PEDIDO DE VISTA DOS AUTOS FORA DO CARTÓRIO POR 48 HORAS E FIXOU O PRAZO PARA APRESENTAÇÃO DE RESPOSTA À ACUSAÇÃO EM 10 DIAS. CERCEAMENTO DE DEFESA (…) O fato de terem sido denunciadas 6 pessoas não revela um número tão vultoso de réus, a ponto de justificar a restrição de acesso aos autos, mormente quando indemonstrado pelo juízo coator que a retirada do caderno processual ocasionaria algum prejuízo ao regular andamento do feito (…) ORDEM CONCEDIDA (…) PARA CONCEDER CARGA DOS AUTOS À DEFESA DO PACIENTE, PELO PERÍODO DE 10 (DEZ) DIAS” (TJGO, 1ª Câm. Crim., HC 5296710.26.2019.8.09.0000, Rel. Desor. Itaney Francisco Campos, julgado em 25.7.2019).

De acordo com o desembargador Relator Itaney Francisco Campos em seu voto condutor, citando o jurista Eugênio Pacelli de Oliveira, “tanto o contraditório, com a sua exigência de participação em igualdade (a par conditio), quanto o princípio da ampla defesa já impõem o afastamento da regra segundo a qual os prazos correriam em cartório”.

O desembargador ainda registrou no seu voto, que a defesa deve ser ampla e igualitária “em relação ao órgão da acusação (que tem amplo acesso aos autos, segundo prerrogativa disposta em leis orgânicas)”, e não pode ser realizada “sem a consulta direta aos autos do processo, pelo tempo efetivo e integral do prazo estabelecido para a prática do ato. E isso não será possível com a imposição do exame em cartório. Semelhante regra impõe restrições inaceitáveis e promove, ainda mais, o desequilíbrio na balança das relações entre o Estado e o acusado. Não bastasse, o atual Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, Lei no 8.906/94, já garante ao advogado o acesso direto aos autos, bem como o direito à indispensável retirada deles de cartório (art. 7º, XV)”.

Desse modo, pode-se concluir que na fase da “resposta à acusação” jamais deve haver impedimento ao direito de vista e retirada de autos judiciais criminais físicos pela defesa técnica; e quando houver pluralidade de acusados e defensores, cada um destes deverão gozar, individualmente, do prazo legal para apresentação da defesa escrita, sob pena de se macular os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV, CF), e o processo judicial ser anulado na forma do art. 564, inciso IV, do CPP.

*Roberto Serra da Silva Maia é mestre em Direito, professor universitário e advogado criminalista