Marcelo Bareato*
O termo lawfare, uma combinação das palavras law (lei) e warfare (guerra), tem ganhado destaque no debate jurídico contemporâneo, especialmente no contexto do direito penal. O conceito refere-se ao uso estratégico e instrumentalizado do sistema legal como uma arma para atingir objetivos políticos, econômicos ou pessoais, muitas vezes distorcendo a finalidade original da lei. No âmbito penal, o lawfare pode ser utilizado para criminalizar adversários, perseguir dissidentes ou manipular processos judiciais para fins que extrapolam a justiça.
Nessa circunstância, lawfare pode ser entendido como a instrumentalização do direito para fins que não os originalmente previstos, utilizando-se de mecanismos legais para desestabilizar, desacreditar ou neutralizar adversários. No direito penal, essa prática se manifesta, por exemplo, na abertura de investigações e processos criminais com base em motivações políticas, na utilização seletiva de normas penais para perseguir determinados grupos ou indivíduos, ou na manipulação de provas e procedimentos para garantir condenações previamente desejadas.
Um dos exemplos mais emblemáticos de lawfare no direito penal é o uso abusivo de ações penais como forma de deslegitimar figuras públicas ou políticas. Nesses casos, o processo penal deixa de ser um instrumento de justiça e passa a ser uma ferramenta de guerra política, em que a acusação é utilizada para prejudicar a imagem e a carreira do acusado, independentemente do mérito da causa. Como bem destacam GOMES (Luiz Flávio); BIANCHINI (Alice). Lawfare: A Guerra Jurídica no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 145, 2019), “o lawfare transforma o direito penal em um campo de batalha, onde a lei é usada não para promover justiça, mas para alcançar objetivos escusos”.
Não é por menos que o seu uso representa uma grave ameaça ao Estado Democrático de Direito, na medida em que subverte os princípios fundamentais do direito penal, como a presunção de inocência, a legalidade e a proporcionalidade. Ao transformar o sistema de justiça em um campo de batalha política, ele mina a confiança da sociedade nas instituições jurídicas e enfraquece a legitimidade do próprio direito penal. Não é à toa que ZAFFARONI (Eugenio Raúl. O Direito Penal e o Lawfare: Reflexões sobre a Instrumentalização do Sistema de Justiça. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2020) aponta que, “a instrumentalização do direito penal para fins políticos não apenas viola os direitos individuais, mas também corrói as bases do Estado de Direito”.
Além disso, a utilização dessa prática pode levar à criminalização de condutas que não deveriam ser tipificadas como crimes, ou à aplicação desproporcional de penas, em um claro desrespeito ao princípio da intervenção mínima do direito penal. Logo, trata-se de um mecanismo que, não apenas viola os direitos fundamentais dos indivíduos, mas também desvia o foco do sistema de justiça criminal de sua função primordial: a proteção dos bens jurídicos mais relevantes para a sociedade. Nas palavras de FERRAJOLI (Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014), “o direito penal deve ser a ultima ratio, e não um instrumento de perseguição política”.
Outro aspecto preocupante do lawfare no direito penal é a manipulação de provas e procedimentos para garantir resultados previamente determinados. Isso pode incluir a fabricação de provas, a ocultação de elementos que beneficiariam o acusado, ou a utilização de métodos investigativos ilegais, como escutas telefônicas sem autorização judicial ou interceptações de comunicações fora dos limites legais.
Notadamente, compromete a integridade do processo penal, transformando-o em um instrumento de perseguição e vingança. A falta de transparência e a parcialidade na condução das investigações e dos processos contribuem para a erosão da confiança no sistema de justiça e para a percepção de que o direito penal está a serviço de interesses escusos. Como explica STRECK (Lenio Luiz. Lawfare e o Estado Democrático de Direito: Uma Análise Crítica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021), “a manipulação de provas e procedimentos no lawfare é uma afronta ao devido processo legal e ao princípio da imparcialidade do juiz”.
Dentre outros problemas já elencados, não se pode negar a seletividade do sistema penal, que frequentemente atua de forma mais rigorosa contra determinados grupos ou indivíduos, enquanto ignora ou trata com leniência condutas semelhantes praticadas por outros. Essa escrupulosa forma de agir, inegavelmente, reflete as desigualdades e injustiças presentes na sociedade.
Nesse contexto, o direito penal passa a ser utilizado de forma estratégica para atingir objetivos específicos, muitas vezes em detrimento da justiça e da igualdade perante a lei. Essa prática reforça a percepção de que o sistema de justiça é parcial e injusto, levando autores como NUCCI (Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 10ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2021), a destacar que “a seletividade do sistema penal é um dos maiores desafios para a efetivação da justiça criminal, especialmente em contextos de lawfare“.
Destarte, para combater esse instrumento de aniquilação intencional (lawfare) e garantir a legitimidade do direito penal, é fundamental fortalecer os mecanismos de controle e fiscalização das atividades investigativas e judiciais. Isso inclui a garantia de um processo penal justo e imparcial, o respeito aos direitos fundamentais dos acusados e a transparência na condução das investigações e dos processos.
Além disso, é essencial promover uma cultura de respeito ao Estado Democrático de Direito e aos princípios fundamentais do direito penal, como a presunção de inocência, a legalidade e a proporcionalidade. A atuação responsável e ética dos operadores do direito, incluindo juízes, promotores e advogados, é crucial para evitar a instrumentalização do sistema de justiça e garantir que o direito penal cumpra sua função de proteção dos bens jurídicos mais relevantes para a sociedade. Como indica MIRABETE (Julio Fabbrini. Processo Penal. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2018), “a ética e a responsabilidade dos operadores do direito são pilares fundamentais para a preservação da legitimidade do sistema de justiça criminal”.
Assim, nosso artigo de hoje busca chamar a atenção do leitor ao fato de que o lawfare representa uma grave distorção do direito penal, transformando-o em uma arma para atingir objetivos políticos, econômicos ou pessoais. Por não ser um modismo, trata-se de um fenômeno complexo, voltado a aniquilar democracias constitucionais e o Estado de Direito. Para combatê-lo, é essencial fortalecer os mecanismos de controle e fiscalização das atividades investigativas e judiciais, promover uma cultura de respeito aos princípios fundamentais do direito penal e garantir a atuação responsável e ética dos operadores do direito. Nessa toada, a participação do cidadão procurando conhecer seus direitos e deveres, reforça o objetivo do direito penal em preservar a integridade do sistema de justiça criminal e garantir que cumpra sua função primordial: a proteção dos bens jurídicos mais relevantes para a sociedade.
*Marcelo Bareato é doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial, Direito Internacional Público, Relações Humanas, Criminologia e Execução Penal na PUC/GO e na EBPÓS – Escola Brasileira de Pós Graduação, Conferencista, Parecerista, Advogado Criminalista, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, Vice Presidente da ABRACRIM/GO – Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Seccional Goiás, Membro da Comissão de Direitos Humanos da Seccional OAB/GO, Membro da Coordenação de Política Penitenciária da OAB/Nacional, Membro do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura/GO, Coordenador da Comissão Intersetorial de Acompanhamento da Saúde no Sistema Prisional/GO, Membro do FOCCO – Fórum Permanente de Combate à Corrupção do Estado de Goiás, Membro da ABA – Associação Brasileira dos Advogados, Membro da AASP – Associação dos Advogados do Estado de São Paulo/SP, Membro do IBCcrim – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Membro do Instituto Ibero-americano de Compliance, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).