Iremos inutilizar o indulto 11.302-22?

Emanuel RodriguesEmanuel Rodrigues*

 Uma decisão preocupante foi proferida pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça no dia 24 de abril de 2024 no Habeas Corpus 890.929/SE no que tange a confirmação do posicionamento da Corte Superior acerca da aplicabilidade e abrangência do indulto presidencial 11.302 de 2022, de autoria do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Para que o leitor tenha ciência do que estamos a tratar, é conveniente destacar que em dezembro de 2022, o chamado decreto natalino presidencial estipulou (artigo 5°) que a concessão de indulto natalino poderia se dar nos casos em que o crime não tivesse pena em abstrato superior a 5 (cinco) anos, ressalvadas as hipóteses elencadas no artigo 7° do mesmo decreto.

No mesmo artigo, o paragrafo único dispôs que, na hipótese de concurso de crimes, será considerada, individualmente, a pena privativa de liberdade máxima em abstrato relativa a cada infração penal. Ou seja, para a aplicação do indulto, o juiz deveria observar individualmente a pena de cada delito da sanção condenatória, quando houvesse a ocorrência de concurso, seja formal ou material de crimes.

Note, leitor, que o decreto restou omisso e até silente no que toca a somatória (ou unificação) de penas pelo sistema do SEEU, não indicando se deveria o juiz levar em consideração as penas individuais em cada processo aportado na execução penal ou se deveria avaliar a aplicabilidade do decreto 11.302/22 no total de penas unificadas e somadas no sistema de execução.

O problema ficou a cargo do parágrafo único do artigo 11 do aludido decreto, que dispôs que não será concedido indulto natalino ao crime que se verificar possível a aplicação, enquanto a pessoa condenada não cumprir a pena pelo crime que não caberia a aplicação do direito, na hipótese de haver concurso com os crimes a que se refere o art. 7º. Ou seja, o decreto dispõe que não será concedido o indulto quando se verificar que no concurso de crimes (não dizendo nada acerca da unificação de penas no sistema de execução penal), há a incidência de crime impeditivo, constado no artigo 7° do mesmo decreto.

Logo que as defesas começaram a pedir a aplicação do decreto, os Ministérios Públicos se insurgiam apontando a inconstitucionalidade de maneira incidental, já que abrangia demais o perdão, sem impor requisitos para o cumprimento, representando “abolitio criminis” temporária. O argumento não ganhou força, seja no TJGO (verificar HC 5196224-91, Rel. Des. Édison Miguel, 2ª Câmara), seja no STJ, que logo tratou de afirmar que (i): “a análise de matéria constitucional não é de competência desta Corte”, como no caso do AgRg no REsp 1.651.550-DF; (ii): a concessão de indulto, na própria dicção do Supremo Tribunal Federal, representa questão de política criminal do executivo, como no caso da ADI 5.874 e (iii): que a ADI 7.330 do MPF que questionava a constitucionalidade do decreto 11.302 de 2022, questionava tão somente os artigos 6º, caput e § único, bem como o artigo 7º, § 3º. Ou seja, não havia que se falar em inconstitucionalidade, ainda que incidental do dispositivo do artigo 5°.

No entanto, os Ministérios Públicos passaram então a afirmar que os juízes singulares deveriam, para verificar a aplicabilidade do decreto e concessão do indulto, verificar as penas unificadas da execução penal do condenado, já que, em vários casos, havia a incidência de crime impeditivo no computo das penas unificadas da execução, sustentando a afirmativa no artigo 11, § único do decreto 11.302/22.

No entanto, novamente o STJ afastou esse argumento afirmando que a interpretação sistêmica dos artigos 5º e 11, § único do decreto, afastavam essa hipótese por não preverem expressamente a interpretação pretendida pelo Órgão Ministerial.

A fim de ilustrar o entendimento do Ministro, imagine que uma pessoa foi condenada na ação penal “X” pelo crime do artigo 155, caput, do Código Penal com pena máxima em abstrato de 4 anos de reclusão, aplicada a pena concreta de 1 (um) ano de reclusão já transitada em julgado. Essa mesma pessoa, na ação penal “Y” foi condenada ao crime do artigo 157, caput, com pena máxima em abstrato superior a 5 anos, e com a recente alteração da lei 13.964/19, hediondo, com pena concreta de 6 anos de reclusão, unificadas as penas em 7 anos de reclusão na execução.

Na interpretação proposta pelo Ministério Público, e rejeitada pelo Superior Tribunal de Justiça, temos que o condenado não terá direito ao indulto no que cabe ao crime do artigo 155, já que não cumpriu integralmente a pena do crime do artigo 157 que restou unificada em sua execução penal, embora condenado em ações penais distintas, com guias definitivas distintas.

Estabelecida essa premissa, o Ministro Sebastião Reis afirmou que tal pensamento representa extensão interpretativa in malan partem, já que o decreto não dispôs sobre o tema, sendo claro no § único do artigo 5º que as penas devem ser analisadas individualmente em caso de concurso de crimes. Para além disso, se o leitor me permite acrescer, em nada se compara ou mesmo tem a ver unificação de penas com concurso de crimes, seja formal ou material, o que indica que o STJ, ainda que não tenha indicado esse argumento último, caminhou bem a proferir essa decisão.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal, por meio de seu presidente, Ministro Luís Roberto Barroso, acatou recentemente na SL 1.698 o pedido do Ministério Público do Rio Grande do Sul (o mesmo que pediu a suspensão das liminares que impediam a execução provisória das penas dos condenados no júri da boate Kiss), que visava a suspensão de liminares do STJ que concediam o indulto com base na decisão capitaneada pelo Ministro Sebastião Reis na 3ª Seção da Corte Cidadã, com o fundamento de que o STF vinha entendendo de maneira distinta a questão controvertida, citando precedentes.

O Ministro então referendou a medida cautelar pedida pelo MPRS e suspendeu as liminares do STJ nos HC’s 870.883, 872.808, 875.168 e 875.774, todos do Rio Grande do Sul, causando um efeito contrário a evolução do entendimento que já vinha sendo firmado pelo STJ.

Foi então que no dia 24 de abril, na sessão da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, que o próprio Ministro Sebastião Reis afetou o habeas corpus 890.929 para novamente recrudescer o entendimento e definir que a aplicação do indulto deve levar em consideração a unificação das penas, sendo impossível a concessão deste, quando verificado que o condenado se encontra cumprindo pena por crime impeditivo, ainda que as condenações tenham se dado em ações penais distintas.

Aguardemos os próximos passos do STF sobre o tema. Porém, é importante consignar que o tema voltará a ser discutido, pois como disse o próprio Ministro Sebastião, “me curvo a decisão do Supremo, ressalvado o meu entendimento pessoal”.

Lado outro, quem não pode e certamente não vai se curvar a essa decisão é a advocacia criminal, que deve se manter altiva e firme na defesa da aplicabilidade da interpretação mais benéfica ao condenado. A escolha foi liberal e irrestrita do Presidente da República, e é por isso que ela deve prevalecer. Talvez falte ao Poder Judiciário e ao Ministério Público a internalização da frase “Nós perdemos. Sinto muito, mas nós perdemos”. Seguimos, pois é assim que, diariamente, o mundo é salvo pelos advogados.

*Emanuel Rodrigues, Advogado Criminalista; Especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto Goiano de Direito; Especialista em Direito Público e Pós-graduando em Direito Probatório no Processo Penal pela Escola Superior da Magistratura Federal do Estado do Paraná.