Covid-19 no Brasil e política externa: reflexões preliminares

*Paulo Henrique Faria Nunes

A disseminação da Covid-19 e sua evolução para uma pandemia suscitam discussões médicas, econômicas e políticas. O desafio do novo para pesquisadores, a necessidade de tomada rápida de decisões para gestores e governantes, o receio da população perdida entre uma guerra de narrativas cujas entrelinhas trazem interesses político-eleitorais, econômicos e maluquice de toda ordem nas redes sociais.

Nesse contexto caótico, refletir sobre algumas questões internacionais é um exercício necessário. Em primeiro lugar, por mais que muitos países tenham fechado suas fronteiras a estrangeiros independentemente de sua categoria, se candidatos ao status de refugiado ou a um golden visa, as instituições intergovernamentais se mostraram indispensáveis. Em que pese o discurso raivoso dos inimigos do globalismo representado pelo Sistema das Nações Unidas, governos se veem forçados a buscar diálogo e trocar informações com o auxílio de agências especializadas como a Organização Mundial de Saúde e a Organização da Aviação Civil Internacional. As entidades regionais também têm na crise pandêmica um espaço para mostrar sua importância.

Cordialidade não é a palavra para melhor definir uma era em que chefes de Estado e outras autoridades se esquecem ou ignoram que “cargos” não tiram férias. Frases de presidentes e ministros ecoam pelo Twitter e levam mensagens que lembram declarações de guerra; pronunciamentos irresponsáveis transmitidos instantaneamente para o outro lado do planeta prejudicam relações políticas e econômicas.

Pode-se inserir nesse contexto o atrito decorrente do tuíte nada amistoso de Eduardo Bolsonaro – filho de presidente, aspirante a embaixador e Presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados – relacionado ao coronavírus: “[a] culpa é da China e liberdade seria a solução”. A embaixada da China respondeu no mesmo tom e se reportou a “@BolsonaroSP”, “@ernestofaraujo” e “@rodrigomaia”. Embora apoiadores do governo familiar tenham criticado o embaixador Chinês, o deputado Marcos Feliciano inclusive afirmou que Jair Bolsonaro deveria expulsá-lo do país, deve-se lembrar que o Brasil contribuiu para o vale-tudo na retórica diplomática. Mandar Angela Merkel reflorestar a Alemanha com o dinheiro do Fundo Amazônia e avacalhar a primeira-dama francesa em rede social são exemplos mais do que suficientes.

Diálogo entre Estados é uma via de mão dupla e pressupõe consentimento mútuo. A Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (CVRD) segue essa premissa e prevê a possibilidade de um país declarar qualquer membro de uma Missão Diplomática persona non grata… até o embaixador. A CVRD, adotada em 1961, reflete um mundo sem internet e redes sociais. Segundo o parágrafo 1 do art. 27, “[…] Estado acreditado permitirá e protegerá a livre comunicação da Missão para todos os fins oficiais. Para comunicar-se com o Governo e demais Missões e Consulados do Estado acreditante, onde quer que se encontrem, a Missão poderá empregar todos os meios de comunicação adequados, inclusive correios diplomáticos e mensagens em códigos ou cifra.

Não obstante, a Missão só poderá instalar e usar uma emissora de rádio com o consentimento do Estado acreditado”. O parágrafo 2 do art. 41 determina que “[t]odos os assuntos oficiais que o Estado acreditante confiar à Missão para serem tratados com o Estado acreditado deverão sê-lo com o Ministério das Relações Exteriores ou por seu intermédio ou com outro Ministério em que se tenha convindo”.  Redes sociais são um “meio adequado”? A referência a “@rodrigomaia”, presidente de uma das casas legislativas”, viola o art. 41 ou representa uma ofensa ao princípio da não intervenção? Hoje um pronunciamento de uma autoridade se torna onipresente em pouquíssimo tempo. Portanto, ocupantes de cargos políticos não podem se comportar publicamente sem o mínimo de cuidado. Isso revela despreparo para o exercício da função. Quanto mais autoridades nacionais se comportam assim, mais abrem margem para que países estrangeiros reproduzam tal comportamento em relação ao Brasil.

É claro que, conquanto amparada em uma norma internacional, Brasília não se atreveria a expulsar o representante de Pequim. A China é o maior comprador de produtos brasileiros. Além disso, o gigante asiático pode ser uma peça fundamental na captação de investimentos ou, quiçá, empréstimos. Seja a Covid-19 uma gripezinha ou um resfriadinho, nações como Alemanha e Reino Unido adotaram planos ousados em socorro à economia e destinaram vultosas somas para preservar empresas, empregos e pessoas em situação de vulnerabilidade.

O Senado norte-americano aprovou um plano na ordem de 2,2 trilhões de dólares, mais do que o PIB brasileiro em 2019, em virtude do impacto social e econômico da gripezinha. As medidas anunciadas pelo Palácio do Planalto foram consideradas pífias. E o cenário não é dos mais animadores: economia se arrastando há alguns anos, estimativa de queda de arrecadação por causa do isolamento social, mais cidadãos desempregados e na informalidade, gastos extras no sistema de saúde.

A China é um player importante para quem busca financiamento. Além do FMI e do Banco Mundial, instituídos na fase final da Segunda Guerra Mundial, não se deve perder de vista o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), também conhecido informalmente como Banco do BRICS. O alicerce dessa possível fonte de captação de recursos externos é a China. Então, não é nada inteligente procurar espontânea e gratuitamente confusão com o Dragão. Voltando à imprudência nas redes sociais, corre-se o risco de realizar um ataque quixotesco às avessas: mirar o moinho e encontrar um gigante que o Brasil não tem a menor condição de enfrentar.

Em setembro de 2019, enquanto incêndios atraíam holofotes para a Amazônia, governadores da região se reuniram com os embaixadores de Alemanha, Noruega e Reino Unido à contragosto do Itamaraty e do Presidente da República; em outubro publicaram uma declaração na qual defenderam as diretrizes do Sínodo da Amazônia, evento episcopal demonizado pelo Planalto. O documento reconhece a necessidade “de um modelo de desenvolvimento sustentável com ênfase na justiça social, solidariedade, respeito à natureza e às populações originárias e tradicionais, especialmente indígenas”, mostra preocupação com a crise climática e humanitária mundial e faz um apelo à cooperação internacional. Evidentemente, os governadores estavam preocupados com os recursos estrangeiros para o financiamento de projetos na Amazônia.

O embate entre Jair Bolsonaro e os governadores por ocasião da pandemia pode provocar novas ações internacionais de governos estaduais, iniciativas paradiplomáticas. Embora a saúde seja responsabilidade dos três níveis político-administrativos (União, estados e municípios), o poder público federal fica mais distante do cidadão. É claro que recursos federais chegam às secretarias estaduais e municipais, mas a população tende a cobrar mais os prefeitos e os governadores. Com exceção do Rio de Janeiro e do DF, hospitais federais são predominantemente ligados às universidades públicas. A maior parte da rede pública é gerida por estados e municípios.

É natural que governadores se mostrem mais preocupados pois, além de lidarem com a população mais diretamente, eles podem suportar primeiro o impacto eleitoral da crise sanitária. Assim, é possível que eles tentem buscar dinheiro no exterior. A Constituição Federal exige a autorização do Senado para a realização de qualquer operação externa de natureza financeira, mas o Legislativo tem mostrado protagonismo suficiente para aprovar tais operações. Certamente ainda faltaria a chancela presidencial em um “acordo de garantia” relativo ao financiamento externo. No entanto, recusar dinheiro em tempo de crise poderia ter um efeito negativo para o Poder Executivo.

Por enquanto, isso é só o começo… que venham os próximos capítulos.

*Paulo Henrique Faria Nunes é jurista, professor e pesquisador (PUC Goiás, Universo), xonselheiro Fiscal da Associação dos Professoras da PUC Goiás (Apuc). doutor em Ciências Políticas e Sociais (Université de Liège – Bélgica)