Se sexo com menor de idade é baseado no afeto, este não configura violência sexual, entende juíza

A juíza Placidina Pires foi quem analisou o caso
A juíza Placidina Pires foi quem analisou o caso

Para que seja configurada a violência sexual é preciso que o julgador não se restrinja tão somente aos elementos objetivos do tipo penal, bem como a idade cronológica do ofendido e analise as peculiaridades de cada caso concreto, especialmente aqueles que envolvam jovens casais de namorados. Sob esse enfoque, a juíza Placidina Pires (foto), da 10ª Vara Criminal de Goiânia, absolveu um rapaz denunciado por estupro de vulnerável contra uma garota que na época tinha 12 anos, por entender que não houve ofensa à dignidade da menor. Os dois vivem atualmente como marido e mulher com o apoio dos pais, tem um filho e declararam em juízo que se apaixonaram cedo.

A magistrada observou as teses defendidas pelo doutrinador Guilherme de Souza Nucci e do ministro Celso Limongi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de que é preciso compatibilizar o Código Penal (CP) com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que define como criança a pessoa até 12 anos, e como adolescente aquela entre 12 e 18 anos, para avaliar a vulnerabilidade do menor de idade. “O legislador, na área penal, continua retrógrado e incapaz de acompanhar as mudanças de comportamento reais na sociedade brasileira, inclusive no campo da definição de criança ou adolescente. Perdemos uma oportunidade ímpar para equiparar os conceitos com o Estatuto da Criança e do Adolescente, ou seja, criança é a pessoa menor de 12 anos; adolescente quem é maior de 12 anos. Logo, a idade de 14 anos deveria ser eliminada deste cenário. É o que demanda a lógica do sistema legislativo, se analisado em conjunto”, destacou, ao parafrasear entendimento de Guilherme Nucci.

A seu ver, a interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) trilhada sobre a relatividade da presunção de violência, no sentido de examinar caso a caso, para se constatar, de forma concreta, as condições pessoais de cada vítima, o seu grau de conhecimento e discernimento, diante da extraordinária evolução comportamental da moral sexual contemporânea, é a mais racional e coerente. “A presunção de violência prevista no artigo 224 do Código Penal cede à realidade. Até porque não há como deixar de reconhecer a modificação de costumes ocorrida de maneira assustadoramente vertiginosa nas últimas décadas. Os meios de comunicação de um modo geral e, particularmente, a televisão são responsáveis pela divulgação maciça de informações. A seleção não é feita sequer de acordo com medianos e saudáveis critérios que pudessem atender às menores exigências de uma sociedade marcada pela dessemelhança”, mencionou, citando parte do acórdão do ministro Marco Aurélio de Mello, do STF, acerca do tema.

Na sua opinião, o posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) de que para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no artigo 217-A, caput, do Código Penal (basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos; o consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de um relacionamento amoroso entre ele e a vítima não afastam a ocorrência de crime), precisa passar por uma nova reflexão. “Não me convence a fundamentação inflexível, baseada em proteção que, em vez de proteger, desprotege e desampara quem merece proteção integral do Estado, permitido uma interferência desnecessária e desproporcional do Direito Penal nas deliberações tomadas no seio das famílias regularmente constituídas”, criticou.

Quanto ao objeto da proteção estatal, a magistrada seguiu a linha de raciocínio do próprio Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), de que “o bem jurídico tutelado no estupro de vulnerável (CP, art. 217-A) é a dignidade sexual do menor de 14 anos”. “O conteúdo essencial da dignidade sexual implica a proibição do menor de 14 anos ser tratado como objeto sexual. Por exemplo, aquele que mantém conjunção carnal com jovem prostituída menor de 14 anos, mesmo diante da sua experiência e concordância, realiza o tipo penal, formal e materialmente (as coisas têm preço, as pessoas têm dignidade). Por outro lado, dois jovens, um no início da adolescência e outro no final, em um relacionamento amoroso que chegue à conjunção carnal prematura não realiza materialmente o tipo de estupro de vulnerável, já que nenhum tratou o outro como objeto, mas como pessoa querida”, referiu-se a jurisprudência do Tribunal goiano, cujo relator foi o desembargador Edson Miguel da Silva Júnior.

Vulnerabilidade relativa

Ao avaliar as peculiaridades do caso de forma aprofundada, a juíza entendeu que nessa situação específica a vulnerabilidade é relativa, já que a vítima mantinha relacionamento afetivo com o agente, além de ter discernimento mínimo para a relação sexual, pois não era mais virgem e admitiu, em depoimentos prestados na Justiça, que manteve anteriormente outros relacionamentos amorosos. “Vejo ainda que o ato sexual foi consentido, que a ofendida convive em união estável com o acusado desde então e que tem um filho proveniente desse relacionamento. No mais, o réu está disposto a constituir família com a menor a fim de criarem juntos o menino que tiveram e ainda contam com a anuência dos familiares da jovem. Não se trata evidentemente de pedofilia ou de exploração sexual da adolescente”, argumentou.

Em uma sociedade moderna, conforme frisou Placidina Pires, com o amadurecimento precoce dos jovens, resultante do maior acesso à informação e ao conhecimento, inclusive de temas relacionados à sexualidade, que não são mais vistos como tabu, não se mostra razoável desconsiderar as particularidades de cada caso concreto. “Injustiças imensuráveis poderão ser cometidas sob o manto da proteção da dignidade sexual dessas pessoas, consideradas física, biológica, social e psiquicamente fragilizadas, caso o julgador considere para configuração da violência sexual tão somente os elementos objetivos do tipo penal e repute como critério absoluto da vulnerabilidade a idade cronológica do(a) ofendido(a)”, pontuou.

A magistrada lembrou que no passado a preocupação do legislador era com o comportamento ético sexual e a moral média da sociedade, ao passo que agora, a Lei nº 12.015/09, passou a tutelar o direito de autodeterminação do indivíduo, relevando a proteção da dignidade da pessoa humana, sob o ponto de vista sexual. “O intérprete da lei não pode ser cego a ponto de não enxergar a realidade circundante, pois é função do julgador manter o equilíbrio e a paz social, aplicando a lei com vista a garantir a segurança, mas também assegurar o bem-estar, a tranquilidade e a harmonia da comunidade em que se encontra inserido”, asseverou.

Legislação estrangeira x sexo consentido entre adolescentes

A forma como a questão é vista em outros países foi examinada por Placidina Pires que explicou que nos Estados Unidos, por exemplo, o problema do sexo consentido entre adolescentes foi resolvido a partir do momento em que se estabeleceu a exceção Romeo and Juliet Law, inspirada nos célebres amantes juvenis imortalizados por Willian Shakespeare, hipótese em que é afastada a presunção de violência quando a diferença de idade entre os protagonistas do ato sexual seja igual ou menor de cinco dias.

“Nesses casos, não há crime, pois é considerado que ambos estariam no mesmo momento de descoberta da sexualidade. De igual forma, o direito italiano possui previsão semelhante, não punindo o ato sexual realizado entre menores, se a diferença de idade entre eles for de até três anos de idade. Para os casos de menor gravidade foi estabelecida uma causa de diminuição de pena de até dois terços”, acentuou.

Para a juíza, o direito brasileiro poderia ter adotado orientação semelhante nessa seara quando houver a possibilidade de que o ato sexual consentido resultou de relação de afeto. O contato sexual de forma consentida, o fato de se tratar de casal de namorados, a compatibilidade de idade, e, ainda, se o relacionamento foi permitido pelos pais ou responsáveis legais, ou se se trata de hipótese de exploração sexual do adolescente.

“Mesmo após o advento da Lei 12.015/2009, continua viável ao intérprete da lei penal realizar uma avaliação do grau de vulnerabilidade dos menores de 14 anos, para aferir a sua capacidade de consentimento com o ato sexual. Partindo desse norte, entendo que é possível ao magistrado, em se tratando de ofendido (a) maior de 12 anos e menor de 14 anos, analisar outros aspectos, especialmente nos casos de relacionamentos entre jovens, em que o nível de maturidade e a eventual experiência sexual vivenciada anteriormente devem ser pesados”, ponderou. Fonte: TJGO