Contratos x Contrato de Trabalho

Na coluna Rota Trabalhista desta terça-feira (26), eu e a advogada Nycolle Araújo Soares vamos abordar a necessidade de especialização do exercício da advocacia ou a possibilidade de não se especializar.  Isso porque hoje os advogados emergem em um panorama em que saber apenas Direito do Trabalho, por exemplo, é insuficiente quando se pensa nas novas relações de emprego advindas com a reforma trabalhista. Isso porque as partes deixaram de estabelecer um vínculo empregatício “tradicional” e agora se conectam por um contrato cível.

Nycolle é especialista em Direto Contratual, Direito Civil e Processo Civil, Analista de Finanças pela FGV, especialista em Compliance e professora de Processo Civil.

Confira abaixo a íntegra do texto:

Nycolle Araújo Soares

Ao longo dos anos as relações de trabalho tipicamente trabalhistas acabaram sendo pautadas de maneira muito estrita pelas delimitações legais e pelo entendimento dos tribunais, deixando muito pouco espaço para o que era convencionado entre as partes, principalmente quando não se tratava de uma negociação coletiva.

Esse cenário sofreu uma transformação substancial a partir da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017), com uma efetiva mudança de eixo nas relações de trabalho, principalmente com a ampliação de variáveis de relações de trabalho que não são, necessariamente, relações de emprego. Isso sem falar na própria dinâmica do contrato de emprego propriamente dito, que ganha força e, em alguns casos – como no do “empregado hiperssuficiente” – chega a dispensar as negociações coletivas.

Por outro lado, não é novidade alguma que, de um modo geral, os contratos são menosprezados pela sociedade como um todo, inclusive nas relações cíveis mais habituais do dia-a-dia. Quantas oportunidades distintas a advocacia já não teve que responder a frase: “preciso de um contrato pra isso, Dr?”. Invariavelmente a advocacia deveria responder: “você não precisa de contrato para nada que não seja expressamente previsto em lei – como a compra e venda de um imóvel, por exemplo. Mas não deveria ficar sem nem para ir ao supermercado”.

A verdade é que os contratos existem para relações que não deram cem por cento certo. E as pessoas não gostam de pensar nisso quando estão iniciando uma relação com outra, seja na compra e venda de um carro ou até mesmo o casamento. A sensação de que “pensar que vai dar errado dá azar” se sobrepõe à razão que deveria imperar nas relações jurídicas. As relações de trabalho seguem a mesma lógica. Ainda vivemos uma sociedade que prever situações contratualmente é sinônimo de desconfiança, enquanto deveria ser sinônimo de zelo!

Voltando especificamente às relações de trabalho, essa nova realidade híbrida em que é preciso regulamentar as relações entre as partes que deixaram de estabelecer um vínculo empregatício “tradicional” e que agora se conectam por um contrato cível, os advogados emergem em um panorama em que saber apenas Direito do Trabalho é insuficiente e saber apenas Direito Civil mais ainda nesse cenário.

O cuidado – quase fático, mas também jurídico – com o contrato para que ele não desvirtue de uma relação cível para um vínculo de emprego é inerente à advocacia trabalhista. Mas e os cuidados com a relação cível ali representada? Eles estão sendo menosprezados e a grande verdade é que começam a surgir reflexões nos escritórios de advocacia de demandas cíveis mesmo quando o vínculo de emprego não está presente. Todas essas fragilidades representam passivos que podem vir a se tornar prejuízo significativos.

Ao mesmo tempo em um espaço em que não há regulamentação externa imposta por lei ou por entendimentos jurisprudenciais, como construir um instrumento que tenha efetividade e dê suporte a relação estabelecida diante da flexibilidade que os contratos ofertam?

Só é possível ter efetiva segurança ao estabelecer esses termos quando há uma avaliação interdisciplinar entre o Direito do Trabalho e o Direito Civil, considerando inclusive que o Código de Processo Civil de 2015 também trouxe inovações relacionadas ao tema, como o Negócio Jurídico Processual.

E nesse ponto chegamos ao dilema de sempre quanto à especialização do exercício da advocacia ou quanto à possibilidade de não se especializar – se precisamos de uma análise mais ampla e que considere fatores conectados a áreas distintas, o esforço pela amplitude se faz necessário. Afinal de contas, quantos advogados trabalhistas ainda se lembram de temas estritamente vinculados ao direito contratual – como a supressio (Verwirkung) e surrectio (Erwirkung? Quantos invocam em defesas trabalhistas a prevalência do princípio da boa-fé objetiva prevista no mesmo art. 422 do Código Civil como amparo fático de interpretação do vínculo ali contratualmente gerado?

Não considerar esses e tantos outros fatores cíveis acaba por oportunizar que trabalhadores e tomadores de serviço que poderiam utilizar contratos como suporte para o desenvolvimento de suas atividades de maneira regulamentada e com segurança, não consigam estabelecer termos em equilíbrio, tomados pela sensação de insegurança jurídica.

Ampliando a análise e pensando sobre como a sociedade, de certa forma, passou a reivindicar opções de negócios em que as partes tenham mais autonomia para definir quais serão os parâmetros e critérios para tal, a reflexão que precisa ser feita também é sobre o quanto estamos preparados para isso.

Ainda hoje não é incomum encontrar demandas judiciais que surgiram de contratos feitos de maneira equivocada – ou pior, não feitos. Quando transportamos isso para a realidade do trabalhador, acabaríamos por acrescentar uma camada de vulnerabilidade substancial a ele – seria esse o preço da autonomia?

Essa resposta precisa ser dada pelos profissionais que vão construir esses instrumentos contratuais, interpretando que o trabalhador de outrora permanece fornecendo mão-de-obra mas não tem mais o mesmo papel nessa relação.

A liberdade dos contratos é um desafio para quem vem do universo das delimitações estritas e é justamente isso que exigirá do advogado ou da banca de advogados a capacidade de realizar um trabalho que seja ao mesmo tempo específico e amplo.

Não é mais possível ou sequer razoável que uma banca jurídica trabalhe com as relações contratuais entre empresas que oferecem mão de obra em seus serviços ou mesmo entre essas empresas e o próprio trabalhador. A advocacia cível contratual precisa conhecer um pouco mais sobre relações de trabalho e a advocacia trabalhista urge em aprofundar-se no tema contratual. Ainda melhor seria que, sempre que possível fizéssemos o que os novos tempos exigem – o trabalho multidisciplinar com equipes que dialogam verdadeiramente entre si, o que pode ser chamado (como o é tradicionalmente) de parcerias jurídicas.