Governo busca alternativas para tratamento de dependentes químicos

Dona Carolina (nome fictício, foto ao lado), sussurra a história do filho Pedro (nome fictício). O olhar atento não deixa ninguém esquecer o porquê das grades que separam um cômodo no quintal e a casa da família. No local, o homem com pouco mais de 30 anos está embriagado há quatro dias. O tom baixo da voz da mãe é para evitar que ele escute a entrevista e possa ficar agressivo. O gradeamento da casa foi a única opção em meio a inúmeras tentativas de tratamento para a dependência química de Pedro. A última experiência se transformou em tortura em uma “clínica” de recuperação em Goiatuba.  O dependente foi um dos resgatados pela Polícia Civil em operação contra os maus-tratos físicos e psicológicos que estavam sofrendo.

“Uma mãe não aguenta ver um filho como está o meu ali, não. Ele não melhora, não. Só ia trabalhar bêbado. Agora é que não deu conta. Tô achando que perdeu o emprego. Só para de beber quando a ressaca manda. Quando não consegue trazer a bicicleta, deixa nos botecos. É tristeza para uma mãe, para um pai. Ele é trabalhador, mas a bebida derruba ele. Meu filho é bom para ajudar a gente, mas como que ajuda nesse estado? Ele fica muito agressivo, quando bebe. Já teve situações em que ele bateu na gente. Foi aí que decidimos, mesmo sem poder [sem dinheiro], nós pusemos isso [grade] aqui para ficar mais à vontade, sem perigo”.

A idosa é aposentada.  O marido faz bicos para sustentar a família.  Mesmo com baixa renda, eles tentaram praticamente de tudo para minimizar o problema. Em meio a essa luta contra as drogas travada pela família há décadas, eles decidiram internar Pedro em uma comunidade terapêutica. Foi através de outros familiares que souberam da Clínica Nova Vida. Com muito esforço e sacrifício financeiro, decidiram interná-lo no local. Para isso, eles pagavam R$ 400 e uma cesta básica por mês, além do dinheiro para o chamado “resgate”. Foram cerca de seis meses na unidade, custeados com R$ 5 mil pela família.

“Ele pediu que queria sair dessa, mas depois foi na marra para a clínica. Estava drogado, bêbado. Fiquei muito sentida, quando descobrimos o que acontecia lá. A gente que é mãe, a gente não quer… Antes a gente bater e pôr ele preso aqui dentro de casa do que pagar para ele ser judiado. Pra você ver, pobres iguais a nós tirar 400 contos por mês para pagar uma clínica que não adiantou nada, que só maltratou ele”, comenta Carolina.

O problema com a bebida acompanha seu filho desde os 12 anos. Diariamente, ele bebe inúmeros litros de aguardente e não se restringe a isso. “Ele bebe de tudo. Pinga, cerveja, jurubeba… o que tiver”, afirma. Nos últimos dois anos, começou a fumar crack. Os pais não desistem. Não conseguem compreender ou identificar as causas dessa dependência, mas continuam buscando ajuda. O que a família não imaginava é que o tratamento na tal clínica milagrosa seria baseado em afogamentos, restrição de comida, torturas psicológicas e espancamentos.

Violência disfarçada de tratamento
Só por hoje. A frase é a primeira e última imagem que se vê antes do impacto do taco de beisebol no corpo das vítimas. Escrita na madeira da peça esportiva, a expressão ícone da luta contra a dependência química se transformou em símbolo da tortura e violência vividas na “clínica de recuperação” em Goiatuba, município a 176 quilômetros de Goiânia. O taco apelidado de  Só por hoje era um dos principais instrumentos de agressão e tortura aos dependentes para “abrir sua mente” e extinguir sua revolta. Após oito meses de investigação,  a Polícia Civil libertou de duas unidades da “Clínica” Nova Vida 83 pessoas (conheça algumas dessas histórias) em “tratamento” antidrogas, uma delas era o filho de Dona Carolina. A ação serviu como base para um estudo realizado pela polícia, que está fundamentando as ações do Governo de Goiás na fiscalização às unidades tratamento de drogaditos [indivíduos usuários de drogas e que reconhecem que o vício afeta suas relações sociais].

Nem mesmo Jimmy Kinnon, que fundou os Narcóticos Anônimos em 1953, imaginaria a filosofia do grupo sendo distorcida de tal forma. “Na hora que ouvíamos Só por hoje, já ficávamos com medo. Teve várias pessoas com hematomas, cicatrizes”, lembra o ex-interno William Jerônimo de Sousa, de 30 anos. Segundo ele, os agressores “diziam que era uma abrição de mente, que as pessoas estavam muito revoltadas e achavam que se batessem, ficariam mais calmas“, expõe.

De acordo com o delegado Gustavo Carlos Ferreira, o cenário visto na clínica se assemelhava a um campo de concentração. Ambas as unidades possuíam pequeno espaço interno e tinham cercas elétricas ligadas a 220 volts. No ambiente pequeno, se amontoavam em beliches mais de 40 pessoas. Não havia água quente e o banho era de no máximo dois minutos. A comida era regrada. Apesar dos familiares dos dependentes levarem cesta básica e outros alimentos, a alimentação era sempre a mesma: arroz com ossos de frango, sendo que até mesmo essa refeição era limitada. Uma das vítimas chegou a perder 25 quilos por passar fome. O “tratamento” durava no mínimo nove meses. Nesse período, as visitas e ligações telefônicas familiares eram monitoradas, para impedir que as vítimas denunciassem a tortura.

Os agressores sempre agiam em grupo: 10 pessoas contra cada dependente. No desespero, as vítimas escreviam cartas às famílias denunciando a situação, mas os familiares não acreditavam e o resultado de tentativa de denúncia era mais espancamento. A tortura ocorria de inúmeras formas: com choques elétricos a partir de fios desencapados; xingamentos; ameaças com arma de fogo ao “brincar” com os pacientes de roleta russa (quando se coloca uma munição na arma e começa a apertar o gatilho); choques na cerca elétrica; uso de pimenta e limão em machucados; uso de medicamentos controlados sem prescrição médica; a permanência de um dia para o outro em buracos a céu aberto – de onde não saíam nem mesmo para suas necessidades fisiológicas e serviam como penicos para monitores; entre outros.

A partir desse caso, a Polícia Civil elaborou um estudo e o apresentou ao Conselho Estadual Antidrogas, que tem como objetivo elaborar e fiscalizar as políticas contra as drogas em Goiás. O Conselho atua junto com o Grupo Executivo de Enfrentamento às Drogas (Geed), criado em fevereiro último, para concentrar todas as ações nessa área, composto por nove órgãos do governo: as Secretarias de Segurança Pública, Saúde, Educação, Cultura, Cidadania e Segplan, a Agel, Fapeg e Casa Civil.

“Participamos de uma reunião do Conselho Estadual Antidrogas onde as políticas públicas e o tratamento dos usuários estão sendo delimitados e apresentamos esse estudo de caso, para que seja um exemplo, para que façamos um levantamento bastante aprofundado de como essas clínicas funcionam em todo o Estado”, comenta o delegado Gustavo Carlos Ferreira.

Enquanto os Centros de Referência e Excelência em Dependência Química (Credeq) não são concluídos, o Estado está buscando alternativas para o tratamento de dependentes químicos. Ainda neste mês, deve ser lançado edital para contratação de 700 vagas de internação nas chamadas comunidades terapêuticas. Também serão repassados R$ 50 mil a 23 entidades para que elas possam se estruturar para receber esses pacientes.

No entanto, para evitar casos como os ocorridos em Goiatuba, essas “clínicas” devem seguir rigorosos critérios, segundo as normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Ministério da Saúde. O principal é estar de acordo com a Resolução – RDC nº 29, de 30 de junho de 2011, da Anvisa. Para que o espaço esteja autorizado a funcionar, ele deve possuir uma série de autorizações (veja no box), entre elas a licença de funcionamento da Vigilância Sanitária Municipal e Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde. No tratamento são proibidos castigos físicos, psíquicos ou morais.

De acordo com a chefe do Geed, Ivania Alves Fernandes, o grupo verificou, desde sua criação, 135 entidades que oferecem tratamento a drogaditos, dentre elas 110 comunidades terapêuticas. Desse total apenas 15 estavam regulares. “Não adianta ser só uma boa ação. Nós temos que ajudá-los para que eles possam vir a ser profissionais dentro daquilo que eles criaram com tanto amor. Essa é uma das nossas metas em relação às comunidades terapêuticas”, pontua.

Segundo ela, o interesse do Estado não é ser um mantenedor disso, mas um parceiro para que elas possam trabalhar como empresas. As comunidades têm que ser tratadas como empresas. “Elas devem ter a consciência de que elas têm que se profissionalizar no mercado de trabalho”, explica Ivania.

Tortura
A primeira agressão que William sofreu foi no resgate, momento em que o usuário de drogas era sequestrado e levado para a casa de recuperação. Na frente da família tudo era tranquilo mas, assim que os monitores da “clínica” Nova Vida ficavam a sós com o dependente, a pancadaria começava. O objetivo era “discipliná-lo”. Ao chegar na unidade, os pacientes passavam por um ritual que começava por socos, pauladas e outras agressões, medicação forte (sem prescrição médica) e cárcere privado que durava até 50 dias no setor chamado de contenção.

“Tem que marcar o gado”, era o que afirmava o dono da clínica aos pacientes recém-chegados. O espancamento era tão forte que muitos desmaiavam. A recuperação dos ferimentos ocorria exclusivamente com o tempo, sem medicação ou atendimento médico. Caso o dependente estivesse com alguma visita agendada, esta era adiada para que os familiares não vissem suas marcas e machucados. Profissionais da saúde eram algo inexistente no local.

Uebster Santos Gonçalves, 21 anos, conheceu um pouco dessa realidade. Durante uma semana permaneceu na “clínica” para tratar seu vício de crack, mas nesse período o que testemunhou foram pessoas perdendo sua identidade, autoestima e se tornando reféns do medo. Como todos os outros internos, ele viu colegas serem punidos por reclamarem do ambiente. Eles eram obrigados a furarem buracos no quintal. Após horas nessa tarefa, os monitores espremiam limão e pimenta nas mãos machucadas das vítimas. “Quando a pessoa machucava de tanto trabalhar, eles judiavam mais. A casa tinha cerca elétrica por todos os lados. Eu vi uma vaca morrer ao encostar no arame”, lembra.

Uebster afirma que, quando viu a chegada da Polícia, ele sentiu alegria tomando conta de seu corpo. “Eu senti que estava conquistando minha liberdade”, explica. Há cerca de dois anos começou a usar crack com duas amigas. Para alimentar a dependência, roubava coisas dentro de casa. “Tudo que você vê aqui dentro de casa é novo. Eu comprei faz pouco tempo. Porque ele levou tudo, até talher”, comenta o pai, Ubirajara Gonçalves, de 56 anos. Houve épocas em que Uebster não possuía a chave de casa porque, quando tinha, fazia festas regadas a drogas e furtava tudo o que via pela frente.

Foi em comum acordo que a família e Uebster decidiram interná-lo na Clínica Nova Vida. Uma experiência que revoltou os pais, ao descobrirem as atrocidades cometidas por lá. Assim que saiu dessa “clínica”, ele foi internado em outra, onde pode se livrar do vício. Ele pontua que é uma luta diária, mas que agora recuperou o amor à vida. “Ele ficava dois a três dias fora de casa. Nós não dormíamos de noite preocupados, mas nunca desistimos. Sou o pai, se eu não ajudar, quem vai ajudar?”, avalia. Fonte: Goiás Agora