Papel das forças de segurança na proteção às pessoas

Alexandre Lourenço*

São muito boas as recentes notícias sobre a evolução do estado de saúde da jovem de 26 anos baleada na cabeça por policiais rodoviários federais, na noite de Natal, no Rio de Janeiro, enquanto estava no carro de sua família. Médicos disseram que ela, internada, se recupera gradativamente e está sem sinais de sequelas permanentes irreversíveis. E as sequelas psicológicas, na vítima, em sua família e na sociedade?

Esse é um caso que merece ser tratado para além de si mesmo e um dos mais recentes que ajudam a reforçar, sobretudo, o papel das forças de segurança na proteção às pessoas, no Brasil. Lamentavelmente, uma adolescente de 16 anos morreu baleada durante abordagem da Polícia Militar, em São Paulo, na madrugada do último dia 10. Os exemplos seguem país afora.

Em 2015, em recolhimento sabático, saí pela primeira vez de Goiânia para exercer o cargo de delegado de polícia em Bela Vista de Goiás, uma cidade pequena na região metropolitana, com aproximadamente 20 mil habitantes.

No município, encontrei uma delegacia com todas as características de uma unidade de interior, mas com uma peculiaridade que me chamou a atenção. No balcão de atendimento ao público, existia uma grade enorme e hermética separando os servidores da população, justificada, segundo me foi dito pelos que ali atuavam, pela necessidade de proteção aos policiais.

Como assim? Então, como se protege a população, sem o poder da autoridade, desarmada? Qual impressão da violência tem essa comunidade, onde policiais têm medo da própria população? Não preciso dizer que tais grades foram ao chão imediatamente.

Tempos depois, já de volta à capital do estado, entre inúmeros eventos e solenidades das quais tive que participar por dever de ofício, parte delas, para meu espanto, tratava de inauguração ou agradecimentos políticos realizados pela PRF por blindagens de suas unidades pelas estradas.

Essas blindagens das unidades nas estradas também servem para mostrar exemplos reais de inversão do foco de atuação das próprias forças de segurança. No caso do infeliz evento de Natal, os policiais rodoviários federais alegaram que ouviram disparos quando se aproximaram do carro da família, deduziram que os tiros vinham do veículo, mas depois descobriram que haviam cometido um grave equívoco. Um caso típico do aparente temor que justificaria essa blindagem das unidades policiais Brasil afora.

Nos idos de 2007, estudando sobre a evolução da violência e atualização das polícias, me deparei com um fenômeno descrito em alguns artigos especializados acerca do tema falando da “perda do direito de rendição” imposto ao transgressor, por parte da violência policial, sempre com o argumento de reação a confronto ou agressão praticada por criminosos contra suas equipes.

Ali já se discutia os efeitos deletérios disso para a sociedade. E, para os criminosos, a conta é simples. Ao saberem que terão sentença de morte executada instantaneamente ao serem alcançados pela força policial, a saída que lhes resta é tentar se esquivar, ainda que – aí verdadeiramente – por confronto.

O pior é que o efeito desse fenômeno se espalha para os dois lados da moeda, ou melhor, para todos os lados possíveis. Hoje, as polícias, ou forças que se identifiquem assim, mesmo que não vocacionadas (esse é o caso da PRF, responsável pela fiscalização do sistema viário e não pelo enfrentamento à violência urbana), em zonas de conflito, como em determinados pontos do Rio de Janeiro, sentem-se a todo momento, em risco, vivendo em estado de alerta que a qualquer gatilho pode ocasionar os chamados desvios de conduta, que se repetem aos montes.

São esses desvios que, além de manchar as instituições das forças de segurança, ceifam vidas, impõem traumas humanos e deixam sequelas em famílias inocentes e em toda a sociedade. Fatos assim não atingem apenas a PRF, que aqui é citada pelo evento recente, mas todas as forças policiais e não policiais.

E como enfrentar esse cenário? Essa é a questão colocada para as autoridades. Este momento implica enfrentamento aos problemas e efeitos, sempre negativos para a população e, pior ainda, para o cidadão comum, não policial, que hoje, segundo pesquisas, confia menos nas forças de segurança do que nos transgressores, nos criminosos.

É muito bom que a jovem alvejada como presente de Natal esteja se recuperando. E que não lhe restem sequelas físicas também. Mas as psicológicas, para ela, sua família e toda a sociedade, essas, acredito, são indeléveis. Aos familiares e amigos dela e da adolescente de 16 anos, morta, a nossa solidariedade, com a urgente lição de que devemos avançar como civilização, com a punição dos transgressores e a devida justiça para as famílias, sem banalizar a violência.

*Alexandre Lourenço é advogado especialista em investigação defensiva, ex-delegado-geral da Polícia Civil de Goiás e ex-secretário de Segurança Pública do Estado (interino).