Marco Legal das Garantias: o paradoxo da desjudicialização

Marcos Daniel Dias de Queiroz*

Não raro discute-se o quanto a vida brasileira tem sido judicializada. Diversos fatores contribuem significativamente para o aumento da procura pela prestação jurisdicional, resultando numa sobrecarga do aparato estatal. A meu ver, a concessão indiscriminada do benefício da justiça gratuita reforça o fenómeno da judicialização, ao permitir o acesso desmedido ao Judiciário, muitas vezes através de ações temerárias e predatórias, sem uma análise adequada da efetiva hipossuficiência financeira do demandante.

Observa-se que, embora a judicialização seja intensa, há um esforço crescente para implementar mecanismos que promovam a desjudicialização. Este movimento procura disponibilizar soluções extrajudiciais para os conflitos, evitando o imediato recurso à esfera judicial e permitindo que procedimentos anteriormente exclusivos do Poder Judiciário possam ser realizados noutras serventias, tais como os Tabelionatos de Notas e os Ofícios de Registro Públicos; conduzidos, respectivamente, por tabeliães e registradores.

Dentre esses procedimentos que, num primeiro momento, evidenciam a intenção do legislador em promover a desjudicialização, destaca-se o Marco Legal das Garantias, materializado na Lei 14.711/23. Trata-se de uma legislação fundamentada nas premissas de aprimoramento das regras que regem o tratamento do crédito e das garantias, bem como das medidas extrajudiciais para a recuperação do crédito em nosso país.

Conquanto a intenção destes escritos seja demonstrar o quão falho foi o intento de nossos legisladores em desjudicializar as regras aplicáveis às garantias de crédito, hei de ultrapassar os limites vez ou outra. Seja para expor, de maneira mais detalhada, as mudanças introduzidas pela legislação em estudo; seja para direcionar as críticas a um horizonte ainda mais amplo. Certamente, não poderei, aqui, esgotar todo o assunto em debate, quem sabe em outra ocasião e em formato adequado.

Para adentrar ao assunto, faz-se necessária uma premissa breve e simplista, com o intuito de diferenciar o instituto da hipoteca do instituto da alienação fiduciária. Antes da promulgação da Lei nº 14.711/2023, a hipoteca era uma operação em que um imóvel era dado em garantia de um empréstimo com juros mais vantajosos. Em caso de incumprimento da obrigação, a instituição financeira poderia acionar o Poder Judiciário para proceder à expropriação do bem hipotecado. Por outro lado, a alienação fiduciária consiste em uma garantia atribuída pelo fiduciante, que transfere a propriedade resolúvel de seu imóvel ao fiduciário até o adimplemento da dívida contraída. Em caso de inadimplência, o Cartório de Registros de Imóveis procede à consolidação da propriedade em favor do credor, permitindo que o imóvel seja levado a leilão, sem a necessidade de intervenção do Judiciário.

Com a implantação do Marco Legal das Garantias, os institutos supramencionados passaram por intensas modificações, que doravante serão abordadas. Algumas dessas alterações não se traduzem, primordialmente, em desjudicialização; pelo contrário, mostram-se capazes de incentivar uma maior busca pela intervenção estatal por parte do consumidor.

Principiando, destaco as consideráveis alterações na Lei 9.514/97, que trata da alienação fiduciária. Agora, tornou-se possível a realização de alienações sucessivas sobre o mesmo imóvel, isto é, a alienação fiduciária da propriedade superveniente, que se tornará eficaz a partir do cancelamento daquela anteriormente constituída. Diante de sucessivas alienações fiduciárias, será respeitada a regra da anterioridade na excussão da garantia (art. 2º, Lei 14.711/23; art. 22, §3º, da Lei 9.514/97).

Impõe-se uma crítica nesta seara quanto aos requisitos estabelecidos para determinar que o devedor ou o terceiro fiduciante se encontre em lugar ignorado. Conquanto a esfera judicial atribua um caráter excepcionalíssimo à citação por edital, devido às suas particularidades e ao seu caráter ficto, na esfera extrajudicial da alienação fiduciária será suficiente a tentativa de intimação no local do imóvel dado em garantia ou no último endereço fornecido (art. 26, §4º-B, da Lei 9.514/97). Afigura-se que essa simplificação na intimação do devedor para purgar a mora resultará no aumento de ações anulatórias de leilão extrajudicial, bem como de consolidação da propriedade. Não me parece crível esperar que a intimação editalícia seja capaz de promover a purgação da mora, tampouco de cientificar o devedor acerca das consequências que se avizinham.

No entanto, para não se dizer que tais alterações foram de todo prejudiciais ao consumidor, vale mencionar que, tratando-se de leilão decorrente de financiamentos para aquisição ou construção de imóvel para fins residenciais do devedor e inexistindo lance no segundo leilão que atenda ao referencial mínimo para arrematação, a dívida será considerada extinta, ocasião em que o credor ficará investido na livre disponibilidade do bem. Não sendo a dívida oriunda de financiamento para aquisição ou construção residencial, o devedor continuará obrigado ao pagamento do saldo remanescente (art. 26-A, §2º, e art. 27, §5º-A, da Lei 9.514/97).

Com as alterações à Lei 13.476/17, torna-se digno de nota a possibilidade de extensão da alienação fiduciária de bem imóvel para a garantia de novas obrigações em favor do mesmo credor originário. Contudo, será necessário respeitar o limite da sobra de garantia da obrigação inicial e realizar a extensão no âmbito do Sistema Financeiro Nacional e nas operações com Empresas Simples de Crédito (art. 4º, Lei 14.711/23).

Antes de adentrar nas alterações atinentes ao instituto da hipoteca, ocasião em que o intuito de desjudicialização se fez mais presente, é mister apresentar a novel figura do agente de garantia, prevista no art. 3º da Lei nº 14.711/2023. Trata-se da designação, por parte de um credor ou conjunto de credores, de um terceiro ou de um dos credores do grupo — substituível a qualquer momento —, que atuará em nome próprio e no interesse daqueles na constituição, registro, gestão e execução das garantias.

Pois bem. Conforme mencionado alhures, antes da promulgação da Lei 14.711/23, diante do incumprimento de uma obrigação com garantia de hipoteca, era necessário que o credor acionasse o Poder Judiciário para proceder à expropriação do bem. Ocorre que esse cenário mudou. Agora, com as mudanças implementadas pelo diploma em estudo, é possível que os créditos garantidos sejam executados extrajudicialmente.

O procedimento de execução extrajudicial dos créditos garantidos por hipoteca encontra-se previsto no art. 9º da Lei de Regência. Em suma, não se distancia muito do procedimento de excussão em sede de alienação fiduciária. O prazo para purgação da mora é de 15 dias; não sendo observado, deverá o credor promover o leilão público do imóvel no prazo de 60 dias. Como dito, tratando-se de dívida oriunda de financiamento para aquisição ou construção de imóvel residencial do devedor, também será exonerada a responsabilidade pelo saldo remanescente, caso o produto da execução não seja suficiente para o pagamento integral da dívida (art. 9º, §§1º, 3º e 10º, da Lei 14.711/23).

No entanto, o que me causa espécie não é a possibilidade de excussão da hipoteca mediante procedimento extrajudicial, mas sim o que vem a seguir. É que a indigitada lei atribuiu ao oficial do registro de imóveis a instauração de um verdadeiro concurso singular de credores, quando houver mais de um crédito garantido pelo mesmo imóvel. Caberá ao cartorário formar o quadro geral de credores e organizar o grau de prioridade de cada crédito. Pior ainda, a distribuição dos recursos obtidos com a execução, que na esfera judicial é feita pelo juiz condutor do feito, ficará a cargo do credor exequente, que deverá observar os graus de prioridade estabelecidos pelo oficial do registro de imóveis (art. 10, §§1º e 2º, da Lei 14.711/23).

Hei de postergar as críticas sobre o aludido procedimento extrajudicial para depois dos comentários acerca das alterações ao Decreto-Lei 911/69, ocasião em que criticarei ambos em conjunto.

É que agora, com a inserção dos artigos 8-B, 8-C, 8-D e 8-E no Decreto-Lei 911/69, através do art. 6º da Lei 14.711/23, tornou-se possível a consolidação da propriedade e a busca e apreensão extrajudicial do bem móvel objeto de contrato de alienação fiduciária, inclusive com o monitoramento privado do devedor. Tornou-se faculdade do credor promover tais atos perante o cartório de registro de títulos e documentos, em substituição ao procedimento judicial.

No intuito de promover a desjudicialização e facilitar a recuperação de crédito, houve expressa afronta ao princípio da reserva de jurisdição e à garantia da inviolabilidade da intimidade e da vida privada, previstos na Constituição Federal (art. 5º, incisos X, XI e XXXV). Não me parece existir constitucionalidade nos dispositivos que permitem a expropriação do patrimônio do devedor sem o devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, CF), procedimento este que exige a atuação prévia do Estado-Juiz.

Esse modelo de execução extrajudicial e busca e apreensão privada afronta o princípio da reserva de jurisdição, colocando o devedor à mercê dos interesses dos credores e ensejando o ajuizamento em massa de ações anulatórias. É manifesta a inconstitucionalidade de tais procedimentos, que já foram questionados pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e pela União dos Oficiais de Justiça do Brasil (UniOficiais-BR) perante a Suprema Corte.

Creia-me, as mudanças implementadas pelo Marco Legal das Garantias, se visam à desjudicialização, falham imensamente. Na verdade, darão azo a inúmeras ações judiciais pelas quais o devedor tentará se livrar das abusividades e nulidades ocorridas nos procedimentos extrajudiciais. A simples promulgação da norma já deu ensejo à busca da prestação jurisdicional, como mencionado acima. A bem da verdade, trata-se de uma lei que visa atender exclusivamente aos interesses dos credores, a qualquer custo.

*Marcos Daniel Dias de Queiroz é graduado em Direito e pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil. Assessor de Juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO). E-mail: mddqueiroz@hotmail.com; contato telefônico (62) 99681-2329; Instagram @mdd.qrzz