Marcelo Bareato*
A teoria da cegueira deliberada remonta à decisão inglesa de 1861, no famoso caso Regina v. Sleep, no qual a cegueira intencional foi equiparada ao conhecimento do fato. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte consolidou sua aplicação no julgamento Spurr v. United States (1899). A partir da década de 1970, a teoria passou a ser amplamente utilizada nos EUA em casos de tráfico de drogas.
No Brasil, os tribunais começaram a aplicar essa teoria por influência da Corte Espanhola, destacando-se o Assalto ao Banco Central (2005) e o Caso Mensalão, ambos envolvendo lavagem de dinheiro. Com o tempo, seu uso se expandiu para crimes como tráfico de drogas, contrabando e descaminho, sempre com o intuito de punir crimes dolosos, nos quais os acusados alegam desconhecimento dos fatos relacionados ao crime.
A cegueira deliberada é um conceito jurídico que se refere à situação em que um indivíduo opta por permanecer ignorante sobre informações relevantes, frequentemente para evitar responsabilidades legais. No contexto dos crimes tributários, a aplicação da teoria se torna significativa diante da crescente pressão governamental sobre consultores tributários envolvidos em práticas de evasão fiscal.
A determinação da intencionalidade nesses casos exige que a acusação prove que o indivíduo violou conscientemente seu dever legal. Essa questão é agravada pela tendência de expansão do conceito para outras áreas do direito, como legislações antiterrorismo, ampliando o escopo da responsabilização penal.
Nos tribunais estrangeiros, a aplicação da cegueira deliberada às questões tributárias tem sido debatida intensamente. O caso Cheek v. United States exemplifica como a defesa da ignorância pode ser rejeitada quando há evidências de que o indivíduo evitou intencionalmente conhecer a ilegalidade de suas ações.
No Brasil, decisões judiciais apontam para uma abordagem similar:
- Crimes contra a ordem tributária e o dolo eventual:
- O tipo penal do artigo 1º da Lei nº 8.137/90 não exige o dolo específico, mas o dolo genérico de suprimir ou reduzir o tributo devido, mediante pelo menos uma das condutas ali descritas. Situação específica destes autos em que se constata, na melhor hipótese, conduta animada pelo dolo eventual, ou seja, assumindo-se o risco de produzir o resultado previsto pela lei penal. (TRF3. Apelação Criminal – 36766. J. 04.08.2011)
- Ademais, no caso dos autos, considerando que o réu tinha acesso à escrituração contábil da empresa que gerenciava, e que possuía conhecimento na área fiscal, bem como diante do elevado número de antecedentes criminais que possui, o que lhe exigiria maior cautela quanto à apuração dos tributos devidos, restou configurado, no mínimo, o dolo eventual. (TRF3. Apelação Criminal – 35365. J. 24.07.2013)
Não por menos, o fenômeno mission creep também se manifesta no Brasil, onde legislações originalmente destinadas ao combate ao terrorismo começam a ser aplicadas a crimes tributários. A responsabilidade dos profissionais de contabilidade e consultores fiscais tem sido intensificada por normativas rigorosas, que requerem a prova de intencionalidade deliberada na violação da lei tributária.
A crescente colaboração entre Estados e Governos, como o COSUD (Protocolo de Intenções entre os Estados da Região Sul e Sudeste, de outubro de 2023), reforça essa tendência de interpretação expansiva das obrigações dos contribuintes.
Nosso artigo de hoje tem como objetivo mostrar que a aplicação da teoria da cegueira deliberada nos crimes tributários levanta desafios jurídicos e éticos. A criminalização da omissão intencional pode levar a distorções na justiça, comprometendo garantias legais tradicionais.
É certo que, com os avanços tecnológicos e o aumento das capacidades de fiscalização, as direções futuras devem considerar abordagens mais equilibradas, incluindo a ampliação da educação fiscal e da transparência. Garantir equidade na aplicação da cegueira deliberada é essencial para um sistema tributário justo e eficaz.
*Marcelo Bareato é doutorando em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ, ocupa a cadeira de n.º 21 na Academia Goiana de Direito, professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal Especial, Direito Internacional Público, Relações Humanas, Criminologia e Execução Penal na PUC/GO e na EBPÓS – Escola Brasileira de Pós Graduação, Conferencista, Parecerista, Advogado Criminalista, Presidente do Conselho de Comunidade na Execução Penal de Goiânia/GO, Vice Presidente da ABRACRIM/GO – Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Seccional Goiás, Membro da Comissão de Direitos Humanos da Seccional OAB/GO, Membro da Coordenação de Política Penitenciária da OAB/Nacional, Membro do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura/GO, Coordenador da Comissão Intersetorial de Acompanhamento da Saúde no Sistema Prisional/GO, Membro do FOCCO – Fórum Permanente de Combate à Corrupção do Estado de Goiás, Membro da ABA – Associação Brasileira dos Advogados, Membro da AASP – Associação dos Advogados do Estado de São Paulo/SP, Membro do IBCcrim – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, entre outros (ver currículo lattes http://lattes.cnpq.br/1341521228954735).