Afastada aplicação do princípio da insignificância imprópria em caso de violência contra a mulher

O Tribunal de Justiça de Goiás acolheu argumentação do Ministério Público e tornou sem efeito a aplicação do princípio da insignificância (bagatela imprópria) utilizado pelo juiz de primeiro grau para a não aplicação de pena em um caso de violência doméstica. Com isso, o TJ condenou o réu por lesão corporal contra sua namorada, em crime ocorrido no dia 13 de janeiro de 2016, em Padre Bernardo.

Na denúncia feita pelo Ministério Público de Goiás, foi apontado que C.A.B.F. causou lesão corporal (artigo 129, § 9º e art. 147, CP c/c art. 61, II, “f” c/c art. 5º, III) e ameaçou, com prevalência das relações domésticas contra a mulher (art. 7º, I, Lei 11.340/06), sua namorada. Segundo sustentado, o casal começou a discussão quando saía da fazenda do pai do acusado.

Em razão do desentendimento, a vítima saiu do carro e passou a caminhar pela estrada de chão, enquanto o namorado a seguia com o veículo. Logo após, a mulher retornou para o carro e retirou a chave da ignição, contudo, o acusado pegou a chave da vítima violentamente e, quando ambos estavam fora do carro, jogou-a no chão e posicionou um dos joelhos no rosto e, o outro, na barriga da vítima. Assim, ele passou a pressionar as costas da vítima contra a estrada sem asfalto, o que culminou em lesão devidamente materializadas no exame de corpo de delito.

Consta ainda da denúncia que, após cessarem as agressões, o casal retornou ao veículo e seguiu em direção ao Distrito Federal. No caminho, o réu passou a ameaçar a vítima e agredi-la verbalmente. Em seguida, parou o veículo e deixou a namorada em lugar ermo, sozinha, e retornou para a fazenda de seu pai. A ofendida procurou ajuda em uma propriedade rural e conseguiu carona até Padre Bernardo.

Contestação da sentença
O julgamento do caso aconteceu durante o Programa Justiça Ativa, realizado na comarca em março de 2017, momento em que o juiz, apesar de reconhecer a suficiência das provas quanto à demonstração da materialidade e da autoria do crime de lesão corporal, entendeu que a aplicação da pena havia se tornado desnecessária, em vista da alteração de comportamento por parte do acusado, que se reconciliou com a vítima, não reiterando a conduta, decorrido mais de um ano do fato. Por este motivo, o magistrado aplicou o princípio da insignificância ou bagatela imprópria, fundamentado juridicamente no artigo 59 do Código Penal, além de absolver o réu da acusação de ameaça.

A promotora de Justiça Josiane Pires Negretto, que atuou no julgamento, interpôs apelação ao fim da audiência. Em seguida, o promotor Júlio Gonçalves Melo apresentou razões recursais e sustentou que o princípio da bagatela imprópria consiste no afastamento da pena, por razões de política criminal, em vista da desnecessidade de sua aplicação, embora se reconheça a materialidade e autoria do fato típico criminoso.

Além disso, ele pontuou que o Supremo Tribunal Federal já havia se pronunciado sobre a matéria (HC 130124), negando validade a esse princípio, tendo em vista que a integridade física e psíquica da mulher possuem grande relevância para o Direito Penal e a violência, praticada no âmbito de relações íntimas de afeto, gozam de acentuado grau de reprovabilidade. Ainda nas razões, o promotor alegou que a Lei Maria da Penha veio dar eficácia à norma constitucional do artigo 226, parágrafo 8º, de acordo com o qual o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Na mesma linha de argumentos, a 27º Procuradoria de Justiça, em parecer do promotor José Fabiano Ito, ressaltou que “deve-se ter em mente que a Lei Maria da Penha foi promulgada como fim exclusivo de ofertar proteção à mulher vítima de violência doméstica no âmbito familiar, e não ao agressor. Essa é, pois, a finalidade maior dessa legislação, em que, aliás, deve se amparar toda e qualquer decisão judicial proferida no âmbito dos crimes que envolvem violência doméstica. A endossar esse prisma teleológico de proteção à mulher, é importante exaltar que o próprio legislador ordinário proibiu expressamente, no âmbito dos crimes cometidos em situação de violência doméstica, a aplicação dos institutos despenalizantes que são previstos na Lei nº 9.099/95, e estão relacionados aos crimes de menor potencial ofensivo”. Foi sustentado, ainda, que admitir a aplicação desse princípio, reconhecendo a desnecessidade de aplicação da pena no caso concreto, seria o mesmo que desprestigiar a finalidade almejada pelo legislador quando da edição da Lei Maria da Penha, ou seja, ofertar proteção à mulher que, em razão do gênero, é vítima de violência doméstica no âmbito familiar.

O relator, desembargador Itaney Francisco Campos, destacou que o Superior Tribunal de Justiça já reafirmou o seu entendimento de que não incide o princípio da bagatela imprópria aos crimes e às contravenções praticados mediante violência ou grave ameaça contra a mulher, no âmbito das relações domésticas, dada a relevância penal da conduta, fazendo com que a reconciliação do casal não implique o reconhecimento da desnecessidade de pena. Ainda, esclareceu que o próprio Tribunal de Justiça, por suas duas Câmaras Criminais, tem repelido a incidência do princípio da bagatela imprópria nos crimes e nas contravenções praticados mediante violência ou grave ameaça contra a mulher, no âmbito das relações domésticas.

Diante disso, por unanimidade, foi acolhido o parecer da Procuradoria de Justiça e dado provimento ao apelo do Ministério Público para, tornando sem efeito o princípio da bagatela imprópria, condenar o recorrido pela prática do crime de lesão corporal com prevalência das relações domésticas. Ele foi condenado a três meses de detenção, em regime inicial aberto, com suspensão condicional da pena pelo prazo de 2 anos. Fonte: MP-GO