Gisele Jaci Oliveira da Rocha Campos e Kowalsky do Carmo Costa Ribeiro*
A Lei nº 14.133/2021, também conhecida como a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, trouxe uma nova abordagem para a formalização de contratações diretas, sejam elas decorrentes de inexigibilidade ou de dispensa de licitação. Esses processos exigem a instrução com uma série de documentos que asseguram a transparência e a regularidade do procedimento, conforme estabelece o art. 72 da Lei.
Art. 72 da NLL: documentos obrigatórios
O art. 72 prevê que o processo de contratação direta deverá ser instruído com os seguintes documentos:
- Documento de Formalização de Demanda (DFD) e, se aplicável, Estudo Técnico Preliminar (ETP), Análise de Riscos, Termo de Referência (TR), Projeto Básico ou Projeto Executivo;
- Estimativa de despesa, calculada conforme o art. 23 da Lei;
- Parecer jurídico e pareceres técnicos, se aplicáveis, que comprovem o atendimento dos requisitos exigidos;
- Demonstração da compatibilidade entre a previsão de recursos orçamentários e o compromisso a ser assumido;
- Comprovação de que o contratado preenche os requisitos de habilitação e qualificação mínima;
- Razão da escolha do contratado;
- Justificativa de preço;
- Autorização da autoridade competente.
O parágrafo único do artigo 72 também impõe a obrigatoriedade de publicação do ato que autoriza a contratação direta ou do extrato decorrente do contrato, que deve estar disponível em sítio eletrônico oficial.
Excepcionalidade no Inciso I do Art. 72: flexibilidade documental
O inciso I do art. 72 abre margem para flexibilização da instrução documental, ao prever que alguns documentos, como o ETP, a análise de riscos e o Termo de Referência, poderão ser dispensados “se for o caso”. Isso permite que a contratação direta, em determinadas situações, possa ser formalizada com menos exigências documentais do que em um processo licitatório comum.
A regulamentação sobre quando e como esses documentos podem ser dispensados é estabelecida por normativos internos de cada órgão. Por exemplo, no âmbito federal, a Instrução Normativa SEGES nº 58/2022 estabelece a obrigatoriedade do ETP como documento essencial para o planejamento de uma contratação, salvo em hipóteses excepcionais, como as previstas nos incisos I, II, VII e VIII do art. 75 da Lei nº 14.133/2021, que tratam de dispensa em razão do valor ou em situações emergenciais.
Já no âmbito da Câmara Municipal de Goiânia, a Portaria nº 454/2023 adotou critérios semelhantes, facultando a elaboração do ETP nas situações de dispensa por valor e em casos de emergência.
Substituição do instrumento contratual: Art. 95 da Lei nº 14.133/2021
A Lei nº 14.133/2021 também prevê, em seu art. 95, a possibilidade de substituição do contrato formal por outros instrumentos, como uma carta-contrato, nota de empenho, autorização de compra ou ordem de execução de serviço. Essa substituição é permitida nas contratações diretas por dispensa de licitação em razão do valor ou em compras com entrega imediata, desde que tais instrumentos contenham os requisitos mínimos estabelecidos pelo art. 92 da Lei.
No tocante a possibilidade de substituição do instrumento contratual, destaca-se a recente Orientação Normativa nº 84/2024 da Advocacia-Geral da União (AGU)[1] que ao definir as situações do inciso I do art. 95 da Lei nº 14.133/2021, ampliou a possibilidade de substituição dos contratos formais por instrumentos mais simples de contratação nas situações em que o valor de contratos relativos a obras, serviços de engenharia e de manutenção de veículo automotores e nos contratos relativos a compras e serviços em geral se encaixarem na dispensa em razão do valor, pouco importando se o tipo de contratação resultou de licitação, inexigibilidade ou dispensa.
Antinomia entre os Arts. 72 e 6º da Lei nº 14.133/2021: Termo de Referência
Um ponto de controvérsia interpretativa na Lei nº 14.133/2021 surge da aparente contradição entre o art. 72, inciso I, e o art. 6º, inciso XXIII. O artigo 6º define o Termo de Referência (TR) como um documento essencial para a contratação de bens e serviços, mas o artigo 72 permite a dispensa desse documento em contratações diretas.
Essa aparente antinomia poderá ser solucionada com a interpretação de que, apesar da dispensa permitida pelo art. 72, o TR ainda é necessário, especialmente nas contratações por dispensa de licitação em razão do valor, pois ele contém informações essenciais como a descrição do objeto, quantitativos e prazos de pagamento.
Além disso, apesar de não ser usual, a assinatura do contratado no Termo de Referência poderia substituir o contrato formal, garantindo a clareza e formalização das obrigações pactuadas, notadamente nas hipóteses em que a formalização do instrumento contratual não seja obrigatória.
Justificativa de preço e estimativa de despesa
A justificativa de preço nas contratações diretas segue o disposto no art. 23 da Lei nº 14.133/2021, que estabelece a necessidade de basear a estimativa de preços em dados de mercado. Em situações onde não é possível aplicar os métodos convencionais de estimativa, para as hipóteses de dispensa e inexigibilidade, o preço pode ser justificado com base nos valores praticados pelo contratado, conforme previsão do § 4º do art. 23[2].
Depreende-se que, embora a lei aplique essa possibilidade para as contratações diretas, vislumbra-se uma impossibilidade procedimental da adoção da regra prevista no § 4º do art. 23 por uma decorrência lógica do procedimento que pressupõe a existência de uma fase de disputa de mercado, não havendo de antemão um “eleito” para que a administração se valesse desse instituto nas contratações diretas por dispensa eletrônica, sendo mais aplicável para as hipóteses de inexigibilidade onde o contratado estaria previamente indicado.
Na Câmara Municipal de Goiânia, a Portaria nº 279/2023 estabelece critérios detalhados para a pesquisa de preços, exigindo uma base mínima de três cotações. Em casos excepcionais, é permitido trabalhar com menos de três preços, desde que devidamente justificado.
Ressalta-se ainda a previsão contida no § 1º do art. 6º quanto a necessidade de adoção de critérios fundamentados e descritivos na etapa de elaboração de preços para a desconsideração dos valores, não sendo suficiente a mera menção dos conceitos de sobrepreço, valor excessivamente elevado, valor inexequível ou inconsistente constantes nos incisos do art. 2º da Portaria de Pesquisa de Preço.
Importante destacar a necessidade de uma variedade mínima de valores e bases de dados para uma correta estimativa do valor da contratação, cabendo ao responsável pelo levantamento a análise crítica dos preços coletados, em especial quando houver “grande variação entre os valores apresentados”, sendo admitida de maneira excepcional a determinação de preço estimado com base em menos de três preços, com as devidas justificativas apresentadas pelo agente responsável e aprovadas pela autoridade competente (art. 6º § 3º e 4º da Portaria nº 279/2023).
Análise jurídica e pareceres técnicos
A necessidade de um parecer jurídico para contratações diretas é um ponto passível de divergências. A Orientação Normativa da Advocacia Geral da União nº 69/2021[3] dispensou a obrigatoriedade de parecer jurídico em algumas situações, especialmente em contratações diretas em razão do valor e nas inexigibilidades que não ultrapassem os limites dos incisos I e II do art. 75 da Lei nº 14.133/2021. Contudo, o parecer técnico ou jurídico continua sendo uma ferramenta importante para assegurar a conformidade com os requisitos legais em contratações mais complexas, como as de inexigibilidade.
De qualquer modo, a dispensabilidade da análise jurídica dependerá de ato da autoridade jurídica máxima competente, e levará em consideração o baixo valor, a baixa complexidade da contratação, a entrega imediata do bem ou a utilização de minutas de editais e instrumentos de contrato, convênio ou outros ajustes previamente padronizados pelo órgão de assessoramento jurídico[4].
Publicidade da contratação direta: contrato ou ato autorizativo?
A questão sobre qual ato deve ser publicado, nos termos do parágrafo único do art. 72 da Lei nº 14.133/2021, gera controvérsias interpretativas, pois o dispositivo exige a divulgação do ato que autoriza a contratação direta ou do extrato do contrato em sítio eletrônico oficial. No entanto, o art. 94, II, exige que o contrato resultante da contratação direta seja publicado no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) no prazo de 10 dias úteis, contados da data de sua assinatura.
Para dirimir essa dúvida, a Advocacia-Geral da União (AGU), emitiu a Orientação Normativa nº 85/2024[5], onde estabelece que a publicação do contrato no PNCP supre a exigência de publicidade prevista no parágrafo único do art. 72. Com isso, entende-se que não há necessidade de publicar o ato que autoriza a contratação direta, desde que o contrato seja devidamente publicado no PNCP.
Essa orientação traz maior clareza ao processo, simplificando o cumprimento da publicidade ao centralizar a obrigatoriedade na divulgação do contrato. Além disso, evita a duplicidade de atos e a confusão quanto ao que deve ser prioritariamente publicado. Contudo, de caráter meramente indicativo não vinculando os demais entes da Federação.
Outrossim, para os municípios com menos de 20.000 habitantes, que ainda não são obrigados a utilizar o PNCP, a divulgação ocorre em diários oficiais ou em outros meios eletrônicos[6].
Conclusão
A formalização da contratação direta com base na Lei nº 14.133/2021 envolve uma série de requisitos procedimentais que garantem a transparência e eficiência no uso dos recursos públicos. No entanto, oferece uma flexibilidade considerável, permitindo a dispensa de alguns documentos em situações específicas. O segredo para a correta aplicação dessas normas está na fundamentação das decisões do gestor com base nas peculiaridades de cada caso e levando em conta a regulamentação de cada órgão.
Para os casos em que a Lei concede ao gestor a oportunidade de escolha, as decisões discricionárias atraem o ônus da fundamentação nos termos do art. 20 da LINDB[7] no contexto da exposição da realidade da necessidade e adequação da medida escolhida e, desse modo, torna-se necessária a justificativa acerca da dispensa do ETP nas contratações diretas diante da facultatividade de sua apresentação.
De igual modo, apesar da lei estabelecer a dispensa do Termo de Referência, entendemos a necessidade de sua elaboração inclusive nas dispensas em razão do valor, em virtude de ser o documento oficial que define o objeto da contratação, formas e prazos para o pagamento, indispensável em qualquer procedimento sobretudo diante da possibilidade de substituição de instrumento contratual nesta hipótese.
Além disso, o processo deve sempre garantir a transparência e a publicidade exigidas pela Lei, especialmente no que diz respeito à publicação dos atos no PNCP, o meio oficial de divulgação dos atos administrativos nos termos do inciso I do art. 174 da Lei nº 14.133/2021.
Assim, o sucesso na condução de processos de contratação direta depende não apenas do cumprimento de requisitos formais, mas, especialmente, na observância dos princípios constitucionais que assegurem a integridade e a transparência em todas as etapas procedimentais, mitigando riscos e garantindo a prevalência do interesse público.
*Gisele Jaci Oliveira da Rocha Campos é Procuradora Jurídica Legislativa da Câmara Municipal de Goiânia.
*Kowalsky do Carmo Costa Ribeiro é Procurador-Geral da Câmara Municipal de Goiânia
Referências
[1] Orientação Normativa 84/2024
I – É possível a substituição do instrumento de contrato a que alude o art. 92 da Lei nº 14.133, de 2021, por outro instrumento mais simples, com base no art. 95, inciso I, do mesmo diploma legal, sempre que: a) o valor de contratos relativos a obras, serviços de engenharia e de manutenção de veículos automotores se encaixe no valor atualizado autorizativo da dispensa de licitação prevista no inciso I do art. 75, da Lei nº 14.133, de 2021; ou b) o valor de contratos relativos a compras e serviços em geral se encaixe no valor atualizado que autoriza a dispensa de licitação prevista no inciso II do art. 75, da Lei nº 14.133, de 2021. II – Não importa para a aplicação do inciso I do art. 95, da Lei nº 14.133, de 2021, se a contratação resultou de licitação, inexigibilidade ou dispensa.
[2] Art. 23. O valor previamente estimado da contratação deverá ser compatível com os valores praticados pelo mercado, considerados os preços constantes de bancos de dados públicos e as quantidades a serem contratadas, observadas a potencial economia de escala e as peculiaridades do local de execução do objeto.
- 4º Nas contratações diretas por inexigibilidade ou por dispensa, quando não for possível estimar o valor do objeto na forma estabelecida nos §§ 1º, 2º e 3º deste artigo, o contratado deverá comprovar previamente que os preços estão em conformidade com os praticados em contratações semelhantes de objetos de mesma natureza, por meio da apresentação de notas fiscais emitidas para outros contratantes no período de até 1 (um) ano anterior à data da contratação pela Administração, ou por outro meio idôneo.
[3] Orientação Normativa 69/2021
Não é obrigatória manifestação jurídica nas contratações diretas de pequeno valor com fundamento no art. 75, I ou II, e § 3º da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, salvo se houver celebração de contrato administrativo e este não for padronizado pelo órgão de assessoramento jurídico, ou nas hipóteses em que o administrador tenha suscitado dúvida a respeito da legalidade da dispensa de licitação. Aplica-se o mesmo entendimento às contratações diretas fundadas no art. 74, da Lei nº 14.133, de 2021, desde que seus valores não ultrapassem os limites previstos nos incisos I e II do art. 75, da Lei nº 14.133, de 2021.
[4]Art. 53. Ao final da fase preparatória, o processo licitatório seguirá para o órgão de assessoramento jurídico da Administração, que realizará controle prévio de legalidade mediante análise jurídica da contratação.
- 5º É dispensável a análise jurídica nas hipóteses previamente definidas em ato da autoridade jurídica máxima competente, que deverá considerar o baixo valor, a baixa complexidade da contratação, a entrega imediata do bem ou a utilização de minutas de editais e instrumentos de contrato, convênio ou outros ajustes previamente padronizados pelo órgão de assessoramento jurídico.
[5] Orientação Normativa 85/2024
Nas contratações diretas, a divulgação do contrato no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), na forma dos artigos 94, inc. II, e 174 da Lei nº 14.133, de 2021, supre a exigência de publicidade prevista no artigo 72, p. único, do mesmo diploma.
[6] Art. 176. Os Municípios com até 20.000 (vinte mil) habitantes terão o prazo de 6 (seis) anos, contado da data de publicação desta Lei, para cumprimento:(..) Parágrafo único. Enquanto não adotarem o PNCP, os Municípios a que se refere o caput deste artigo deverão: I – publicar, em diário oficial, as informações que esta Lei exige que sejam divulgadas em sítio eletrônico oficial, admitida a publicação de extrato;
[7] Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (Regulamento)
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)