Você sabe o que é Jurametria? Ela pode auxiliar legisladores e juízes a avaliar uma série de fatores humanos e sociais

Marcelo Guedes Nunes

O Brasil é um país de elevada complexidade burocrática, com 91 tribunais, 16.427 juízes, 60.000 legisladores e 324.000 leis vigentes. Reduzir, simplificar e racionalizar o ordenamento deveria ser uma das principais metas do Poder Legislativo e é, sem dúvida alguma, uma das áreas em que a Jurimetria pode prestar uma relevante contribuição. Ela também pode ser útil para a magistratura. A afirmação é do advogado e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e presidente da Associação Brasileira de Jurimetria, Marcelo Guedes Nunes, que lançou o livro “Jurimetria – como a estatística pode reinventar o Direito”.

Em entrevista ao Rota Jurídica, o presidente da ABJ explica como a especialidade pode contribuir para modernização da economia, da legislação, dos negócios e oferecer segurança jurídica.

Qual a definição de Jurimetria?
Ela se baseia em três pilares operacionais: jurídico, estatístico e computacional. O jurimetrista ideal seria, portanto, um bacharel em Direito capaz de especular sobre o funcionamento da ordem jurídica e familiarizado com conceitos de Direito processual e material; um estatístico capaz de discutir o planejamento de uma pesquisa e conceber testes para suas hipóteses de trabalho; e um cientista da computação capaz de operar programas para minerar e coletar dados.

Feito esse esclarecimento, posso definir Jurimetria como a disciplina do conhecimento que utiliza a metodologia estatística para investigar o funcionamento de uma ordem jurídica. A partir dela, fica claro que a Jurimetria se distingue das demais disciplinas.

Qual origem da Jurimetria?
A expressão Jurimetria foi utilizada pela primeira vez no artigo Jurimetrics: the next step forward, publicado por Loevinger em 1949. A palavra Jurimetria é um neologismo criado pelo advogado americano Lee Loevinger, um assumido admirador do realismo jurídico. Desde jovem, se interessou pela relação do direito com novas tecnologias, nutria interesse por questões relacionadas à metodologia de pesquisa em Direito, atestado pelos seus estudos iniciais em lógica jurídica.Provavelmente por conta do contato com estudos econômicos durante sua atuação na divisão antitruste, Lee Loevinger intuiu que uma metodologia semelhante à da econometria poderia ser empregada para descrever o fenômeno jurídico. Para ele, a verdadeira ciência deve ser falseável e essa nova metodologia descreveria o fenômeno jurídico de forma imparcial e abrangente, mensurando o Direito dentro de padrões de falseabilidade.

Segundo Loevinger, os realistas não deveriam especular em torno da indeterminação do direito. A postura científica correta seria avançar em pesquisas de campo e investigar objetivamente o direito em todas as suas dimensões, medindo o comportamento dos agentes (legisladores, testemunhas, partes e juízes).  O trabalho mais interessante de Loevinger a respeito da Jurimetria é o ensaio Jurimetrics: science and prediction in the field of law, escrito em 1961, 12 anos após a publicação do primeiro artigo sobre o tema.

A única atividade própria de uma definição coerente de Jurimetria é o uso de métodos quantitativos para prever decisões judiciais.

Como foi introduzida Jurimetria no Brasil?
No Brasil, a Jurimetria aparece pela primeira vez em 1973, em uma série de palestras que o italiano Mario Losano, professor de filosofia nas Universidades de Milão e Turim, ministrou em São Paulo à convite do então reitor da Universidade de São Paulo, Miguel Reale, que havia tido contato com uma obra intitulada Giuscibernetica, voltada para o estudo das relações entre informática e direito, que causou algum impacto na comunidade jurídica.

Existe algum exemplo já consolidado com quais indicadores a Jurimetria pode contribuir ao Direito?
Uma pesquisa conduzida com o apoio da Associação Brasileira de Jurimetria – ABJ procurou estimar o tempo médio de duração de uma ação de disso­lução de sociedade empresária no Brasil. Para obter esse número, os pesquisadores contaram o tempo de duração, entre a distribuição e o julgamento da apelação em segunda instância, de uma amostra com 718 ações de dissolução nas 27 unidades da federação. Somando-se todos os tempos e dividindo pelo número de ações da amostra, obteve-se como média 1.782 dias, ou seja, 4 anos, 10 meses e 22 dias.

No entanto, a média não é uma boa referência de quanto tempo uma ação de dissolução no Brasil vai demorar, porque o desvio-padrão observado nos resultados foi muito grande. Assim, apesar de termos uma média próxima de cinco anos, o desvio padrão deu 1.063 dias, indicando que os processos observados estavam 2 anos, 11 meses e 3 dias acima ou abaixo da média, com muitas ações durando mais de 7 anos e outras sendo encerradas com apenas 3 anos. Somente através da análise conjunta dessas duas medidas-resumo foi possível visualizar a enorme disparidade de comportamentos dentro do Poder Judiciário brasileiro e entender na prática quais as possibilidades reais de duração de um processo de dissolução de sociedade.

E qual a aplicação real do resultado efetivo desses dados?
Exemplo de inferência estatística importante para a Jurimetria são as análises de impacto regulatório. Muitas vezes queremos entender como a mudança de uma lei afetou o comportamento das partes e dos juízes na condução de conflitos. A pesquisa empírica que tem por objetivo avaliar as alterações decorrentes de mu­danças na regulação é denominada avaliação de impacto regulatório.  Através dela, pode-se monitorar os efeitos das mudanças implementadas nos regimes legais, ou mesmo de avaliar, preventivamente, se uma pr oposta de lei, uma vez promulgada, produzirá ou não os efeitos desejados.

Há estudos demonstram como essa análise funciona?
A Lei 11.101, que trata da Falência e da Recuperação de Empresas, promulgada em 9 de fevereiro de 2005, tinha como um dos seus objetivos diminuir a exposição de empresas em crise ao risco de uma falência e reduzir o número de pedidos de falência oportu­nistas (utilizados como meio de pressionar o devedor a privilegiar o pagamento do autor do pedido). A pedido do Ministério da Justiça (na Série Pensando o Direito), a Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro procurou responder a esta pergunta (se a lei atendeu ao seu objetivo) através de uma análise de impacto, na qual se avaliou o efeito da nova lei na quantidade de falências.

Os resultados do estudo foram os seguintes: no que diz respeito à quantidade de falências decretadas, a nova lei reduziu a média de 266 falências decretadas no período dos 12 meses anteriores à entrada em vigor da nova Lei para uma média de 185 nos 12 meses seguintes (redução de 30,45%). O mesmo foi verificado nas falências requeridas. O número de pedidos de falência antes da promulgação da nova lei passou de uma média de 1.030 pedidos por mês, no período dos 12 meses anteriores à entrada em vigor da nova lei, para uma média de 452 nos 12 meses se­guintes (redução de 56,11%).

É fácil reconhecer que a Jurimetria é um caminho importante do estudo e da prática jurídica. Na prática, no entanto, quais as consequências da aplicação das normas?
O Direito é um mecanismo de controle social que depende de uma aderência à realidade. Se eu sentar esta tarde e escrever na sala de casa a constituição de um país que tenha meu bairro como território, ela não será Direito pelo simples fato de que a sociedade não reconhece essas regras como vinculantes. Para serem consideradas parte de uma ordem jurídica, as normas precisam ser obedecidas em um grau mínimo e, portanto, o Direito não é apenas um conjunto de textos abstratos, que imputa sanções a condutas: ele é uma autoridade estabelecida capaz de controlar o comportamento das pessoas.

Claro que uma ordem jurídica infalível é uma ficção. As normas não são aplicadas a todos os casos. A polícia falha, os juízes erram e há muitos casos em que a lei deveria ser aplicada e não é. A falibilidade, no entanto, não torna o Direito infenso à causalidade, pelo menos não ao conceito moderno de causalidade. Após a revolução estatística, a ideia de causalidade determinística, na qual o efeito está necessariamente associado à causa, foi substituída pela noção de causalidade pro­babilística, em que o efeito está provavelmente associado à causa. Há causalidade probabilística quando a realização de dada variável é capaz de aumentar de forma significativa à probabilidade de realização de outra variável.Assim, ainda que determinada causa nem sempre seja seguida pelo efeito esperado, a relação existe desde que existam grandes chances de que esse efeito ocorra.

Os juízes estão abertos à Jurimetria?
Sim e não. Cabe um trabalho intenso na formação acadêmica. Posso até concordar que o ideal do conhecimento é a certeza. No entanto, a grande maioria das questões de nossa vida pessoal, profissional e acadêmica, especialmente aquelas envolvendo o direito, como a negociação de contratos ou a defesa em um processo, envolve diferentes graus de risco e incerteza. Consequentemente, somos obrigados a tomar decisões, munidos de informação insuficiente ou contraditória. Dentro desse mundo repleto de surpresas estocásticas, a estatística é o método de investigação capaz de controlar a incerteza, mensurar a probabilidade de sucesso dos argumentos e, com isso, nos auxiliar a tomar decisões.

Só juízes de comarcas nos grandes centros urbanos seriam beneficiados com uso da Jurimetria?
Não. Todos os dados aferidos são de utilidade linear. Mais um exemplo pode ajudar: imagine-se que um pesquisador levante a hipótese de que os juízes de cidades com mais de um milhão de habitantes proferem sentenças com penas mais severas do que os de cidades menores. Realizada uma pesquisa, identifica-se que as sentenças proferidas pelos juízes de cidade grande aplicam penas em média 37% superiores às dos juízes de cidades pequenas. A partir dessa pesquisa, podemos concluir que a residência do juiz em uma grande cidade é causa do aumento das penas? A resposta é não, pelo menos não apenas com base nesse resultado. É possível que o aumento das penas decorra, como antecipado acima, por uma diferença no perfil dos casos julgados pelos juízes, assumindo que a criminalidade em grandes cidades é mais organizada e violenta. Além disso, as cidades de maior adensamento populacional possuem maior renda, maior disparidade social e, portanto, podem constituir um ambiente com propensão a gerar condutas criminosas mais ofen­sivas. Confirmada essa distinção, o local da jurisdição seria uma variável espúria.

Qual o impacto da Jurimetria em curto e médio prazos?
A proposta da Jurimetria é, portanto, estudar a ordem jurídica não através de indivíduos isolados, mas da observação do comportamento das populações, das características gerais dos grupos de conflitos e dos fluxos de movimentação que descrevem.

A maior parte das pesquisas jurimétricas se baseia na observação da ordem jurídica e do comportamento espontâneo de reguladores e destinatá­rios, sem a realização de experimentos. É verdade que as reformas institucionais implementadas pelo governo e pela sociedade civil, que tenham impacto no fun­cionamento da ordem jurídica, podem em algumas oportunidades serem tratadas como semiexperimentos. Apesar de não serem controlados pelos pesquisadores, essas reformas podem viabilizar o teste de hipóteses através do monitoramento do seu efeito em diferentes grupos. A avaliação do impacto legislativo, por exemplo, deveria ser obrigatória. Se nós não podemos testar o sucesso de uma política antes de sua implementação, que pelo menos aproveite-se a oportunidade da promul­gação da lei para aprender com os seus resultados.

A Jurimetria subverte essa lógica e apresenta outra visão, de natureza indutiva, que busca conhecer o Direito de baixo para cima. Explico-me: para a Jurimetria, o Direito real é o Direito aplicado, o Direito praticado pelos tribunais, aplicado e cumprido pelos destinatários das normas.

A Jurimetria ajuda na segurança jurídica?
Com certeza. Trata-se, pois, da garantia de um padrão de punições capaz de dar segurança ao antecipar as consequências de cada conduta com precisão e na qual, em uma situação ideal limite, casos muito pare­cidos sofreriam sempre penas também muito semelhantes.