Pensão: casos sobre famílias paralelas ao casamento devem ser analisados com cautela, afirmam especialistas

extraconjugal
O entendimento do juiz federal é o de que quando se verificam a afetividade, a estabilidade e a ostentabilidade, é possível presumir a boa-fé da requerente.

Wanessa Rodrigues

A Turma Regional de Uniformização (TRU) dos Juizados Especiais Federais (JEFs) da 4ª Região concluiu que em casos de coexistência de relação conjugal e extraconjugal, tanto esposa como companheira devem receber a pensão. A companheira pediu pensão por morte de segurado com quem mantinha uma relação extraconjugal, sob a alegação de que o “concubinato impuro” não tira dela o direito ao benefício. Depois de ter a ação negada pela 2ª Turma Recursal do Rio Grande do Sul, ela ajuizou pedido de uniformização de jurisprudência com prevalência do entendimento da 2ª TR de Santa Catarina, que concedeu pensão em caso semelhante.

Para o juiz federal Marcelo Malucelli, relator da decisão, “quando se verificam presentes alguns pressupostos tais como a afetividade, a estabilidade e a ostentabilidade, é possível presumir a boa-fé da requerente, de maneira que em tais casos não há obstáculo ao reconhecimento de entidade familiar, no modelo estruturado sob a forma de concubinato”. Para especialistas, como ainda não temos uma legislação específica sobre o tema, cada caso deve ser analisado levando em conta suas particularidades e deve se ter cautela.

O advogado Luiz Eduardo Costa, especialista em Direito Civil e sócio do escritório Batista, Coelho e Costa Advogados, observa que o Direito, como ciência eminentemente dinâmica que é, não pode deixar de dar a necessária guarida às diversas relações jurídicas interpessoais existentes, mesmo que elas se desprendam do modelo comumente tido como “tradicional”. Costa lembra que a Constituição Federal e o Código Civil admitem a formação de entidade familiar pela união do casal desprovida da solenidade do casamento, desde que presentes os requisitos inerentes à comunhão plena de vida, quais sejam, a afetividade, a estabilidade e a ostentabilidade.

“Logo, acredito se tratar de louvável evolução da jurisprudência, por aplicar ao caso concreto aquilo que a legislação brasileira, sobretudo a Carta Magna, há tempos já prevê. E, assim, dar a necessária proteção às famílias que, embora constituídas à margem do casamento, devem ter seus direitos preservados”, diz.

Para Costa, o entendimento pode abrir precedentes para que outros casos de famílias paralelas ao casamento tenham os mesmos direitos. O advogado salienta que não se trata de uma inovação jurídica, mas tão somente da aplicação do direito material à situação fática posta sub judice. Ele ressalta que as famílias que se encontrarem em situação semelhante, desde que formadas de boa-fé, devem procurar a preservação de seus direitos patrimoniais e sucessórios. “Havendo a comunhão plena de vida, associada à boa-fé do casal, tem-se o reconhecimento de uma entidade familiar, com a proteção jurídica assegurada pelo Código Civil”, salienta.

O advogado Aldrovando D. de Castro Júnior, do escritório Castro e Castro Advogados, salienta que a matéria uniformizada pela referida Turma Recursal atinge em cheio o tema da Pensão do Decujus (falecido e ou falecida). Ele ressalta que a Justiça Federal, que praticamente domina o assunto, já via esse norte há tempos. Sendo assim, fez muito bem a referida Turma em uniformizar o assunto, o que reduzirá o volume de recursos sobre o tema.

Divergências
Porém, Castro Júnior declara o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ainda diverge sobre o tema e está longe de seguir o entendimento enfrentado pela Turma Recursal. Isso porque, as decisões, na grande maioria, são no sentido em que a “amante” não tem direito. Por enquanto, lembra o especialista, somente a Terceira Turma do STJ segue o entendimento da Turma de Uniformização. Em recente caso julgado pela Terceira Turma do STJ, foi dado o direito de receber pensão a uma mulher que foi amante por 40 anos e que hoje está com mais de 70 anos de idade.

Ao analisar o caso, o ministro João Otávio de Noronha explicou que ambos os dispositivos foram estabelecidos para dar máxima efetividade ao princípio da preservação da família, mas afastou o risco de desestruturação familiar para o recorrente, por conta do “longo decurso de tempo”. “No caso específico, há uma convergência de princípios, de modo que é preciso conciliá-los para aplicar aqueles adequados a embasar a decisão, a saber, os princípios da solidariedade e da dignidade da pessoa humana”, ponderou no julgamento.

Casamento
Castro Júnior diz que não considera que o casamento deixe de ser paradigma e cita a luta dos casais homossexuais nos últimos anos para conseguirem legalizar seus casamentos. “Assim, nossa sociedade em qualquer lugar tem como maioria que o casamento é uma instituição sagrada”, ressalta.

O especialista observa que a União Estável é direito pleno, e sim, tem o mesmo valor do casamento perante o Direito. Porém, para se evitar problemas, salienta Castro Júnior, o melhor mesmo é que os casais desde o primeiro momento em que decidirem compartilhar uma casa, como lar, devem colocar seu desejo em um documento, que é a declaração de união estável, em que ali inclusive podem desde já decidirem tudo que querem ao seu futuro, o que reduzirá e muitos problemas futuros.

Quanto aos critérios para que famílias formadas a partir de relações extraconjugais consigam direitos, Castro Júnior diz que o assunto é muito polêmico e não há uma “fórmula” para isso. Para ele, depende muito do caso em análise e não há como definir um padrão para o assunto. “Acredito que não é correto sumular o assunto. Sigo o pensamento majoritário do STJ, em que deve ser analisado com muito apreço o caso, para então se definir se existe direito para a amante ou mesmo pelo relacionamento extraconjugal”, completa.

Requisitos
Chyntia Barcellos, especialista em Direito de Família, ressalta que a relação extraconjugal para ensejar o direito de receber pensão pela companheira deve trazer alguns requisitos, tais como a afetividade, estabilidade, ostentabilidade (ser público) e, ainda a boa-fé da companheira. Ela salienta que a Justiça não pode fechar os olhos para esses casos, já que o afeto é agregador de laços que implicam em questões financeiras e patrimoniais fortes. “A sociedade tem como preceito a monogamia, sobretudo decisões envolvendo essas questões vêm sendo apreciadas e tomando suas devidas proporções”, esclarece.

O entendimento da referida Turma, segundo Chyntia, é uma uniformidade acerca da pensão, que denota a dependência daquela ou daquele que convivia com o falecido. Por isso, para ela, falar em mesmos direitos para outros casos de famílias paralelas ao casamento é temerário. “Mas sem sombra de dúvidas poderá sim implicar e ter reflexos. Como ainda não existe uma legislação acerca do tema, tendo ainda o princípio da monogamia como preponderante, cada caso deverá ser analisado pelo juiz ou tribunal”, diz.

chyntia
Cada caso deve ser apreciado com cautela, com base na jurisprudência dos tribunais, os princípios gerais e os costumes, como demanda o Código Civil.

Defasada
Chyntia cita que o presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam), Rodrigo da Cunha Pereira diz que, “a legislação atual está ultrapassada e defasada em relação à realidade da família que, hoje, deixou de ser essencialmente um núcleo econômico para dar lugar à livre manifestação do afeto. Pereira salienta que as fontes do Direito de Família como a doutrina e os princípios são avançados, mas as regras jurídicas ficaram ultrapassadas. Embora o Código Civil seja de 2002, ele traduz concepções morais da década de 1960. Daí a necessidade de adequar essas regras às novas formatações de família que não são protegidas pela legislação atual.

Segundo lembra Chyntia, Rodrigo ainda pondera “Será que uma mulher que viveu durante 30 anos com um homem só porque era uma união simultânea, tem que ser condenada a invisibilidade social?”. Chyntia completa que não é uma questão de conseguir ou não direitos. A vida acontece, o afeto dá a forma e, daí em diante, surgem as configurações que se denominam de famílias paralelas ou simultâneas. É uma questão complexa, olhada pela família nuclear, aquela formada pelo casamento, mas a relação extraconjugal pode vir a ser pública, contínua, duradoura, ostentando uma relação familiar, formada além do casal, por filhos.

“Assim, como ainda não temos uma legislação específica e enquanto o STF não se pronuncia, cada caso deve ser apreciado com cautela, com base na jurisprudência dos tribunais, os princípios gerais e os costumes, como demanda o Código Civil”, finaliza.