Um homem condenado por tráfico por portar apenas 4,75 gramas de crack e R$ 6 em espécie; outro, por levar consigo 2,27 gramas de crack e R$ 50 em dinheiro; mais um foi condenado a 6 anos, 9 meses e 20 dias, em regime fechado, por carregar 7,23 gramas de cocaína. Em comum nos três casos, poucos gramas de droga apreendida, ausência de outras provas que atestem o tráfico e, ainda assim, condenações penais expressivas. Em situações como essas, que envolvem pequenas quantidades de entorpecente, em nome da racionalização e da eficiência do Sistema de Justiça, o Ministério Público Federal (MPF) tem se posicionado, cada vez mais, pela desclassificação do crime de tráfico (art. 33 da Lei nº 11.343/06) para o de porte de drogas para uso pessoal (art. 28 da mesma lei).
Embora os sistemas da instituição não disponham de dados consolidados sobre o tema específico, esse posicionamento é crescente e já representa tendência entre os subprocuradores-gerais da República que atuam perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os processos chegam ao STJ em habeas corpus que questionam as condenações, consideradas desproporcionais, proferidas em primeira instância e confirmadas em grau de recurso.
Para os réus, o benefício é claro: embora seja crime, o porte de drogas para consumo pessoal não é passível de prisão pelo pequeno grau de lesividade da conduta. Os processos correm em juizados especiais. As penas são de advertência, prestação de serviços à comunidade e aplicação de medidas educativas. Além disso, as pessoas condenadas não têm antecedentes criminais registrados.
Já para o Sistema de Justiça, os ganhos são a redução no número de processos em curso num Poder Judiciário já sobrecarregado e menos pessoas presas por crimes leves, aliviando o Sistema Prisional. O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, com 661.915 pessoas detidas em celas físicas e 175.528 em prisão domiciliar. Os dados constam do Levantamento de Informações Penitenciárias, elaborado pelo Departamento Penitenciário Nacional e divulgado em 2022.
Critério objetivo – Um obstáculo para que o crime seja classificado de forma adequada já na origem – pelo delegado de polícia no momento da apreensão da droga – é a falta de critério objetivo para estabelecer o que é uso e o que é tráfico. “A ausência de um critério quantitativo, associado a compreensões subjetivas dos agentes e autoridades policiais, faz com que cada delegado estabeleça um parâmetro próprio para o que considera ser tráfico (ainda que de menor monta) e o que entende constituir porte para uso, a depender normalmente das circunstâncias sociais”, explica a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen. De acordo com ela, a classificação do crime feita pelo delegado no momento da prisão do usuário normalmente é reproduzida pela acusação e pelo juiz no curso de toda a instrução processual, numa espécie de efeito cascata, até que o processo chegue aos Tribunais Superiores.
Num caso que chama a atenção, o subprocurador-geral da República Mario Ferreira Leite apontou a desproporcionalidade na condenação de uma mulher a 7 anos de reclusão em regime inicial fechado pelo porte de 0,12 g de maconha. Em parecer enviado ao STJ, ele se posiciona pela desclassificação do crime de tráfico para o de porte para uso pessoal na situação concreta, explicando que os comportamentos nas duas situações podem mesmo se confundir.
Mas alguns aspectos precisam ser analisados para classificar a conduta corretamente: “A natureza e quantidade da substância apreendida, o local e as condições da ação, as circunstâncias sociais e pessoais que envolvem a ação e a prisão, além da conduta e antecedentes do agente”, sustenta.
Repercussão geral
O assunto está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), como lembra Samantha Dobrowolski, outra subprocuradora-geral que tem se manifestado pela desclassificação ou atipicidade do crime de tráfico em casos de quantidades ínfimas. Em parecer enviado, e acolhido pelo STJ, no habeas corpus solicitado por uma pessoa condenada a 5 anos e 10 meses de reclusão, em regime inicial fechado, por portar 47 g de maconha, ela cita o Recurso Extraordinário 635.659-SP, que analisa a constitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006.
O julgamento está suspenso, mas, entre os votos já proferidos, “há uma clara sinalização para a possibilidade da adoção jurisprudencial de um critério objetivo para quantidades de drogas e sua correlação típica respectiva”, afirma. Essa definição, se estabelecida, poderá preencher o vácuo deixado pelo Poder Legislativo, que deveria fixar as quantidades em lei.
Na análise do tema, tanto o MPF quanto o Judiciário tem utilizado como base o estudo produzido por especialistas do Instituto Igarapé, organização não governamental que conduz pesquisas para orientar políticas públicas. A nota técnica analisa a situação do Brasil, a legislação internacional e propõe quantidades objetivas em três cenários, do mais conservador ao mais liberal.
No cenário mais conservador, a quantidade máxima para que uma pessoa seja considerada usuária e não traficante seria o porte de 25 g de maconha e 10 g de cocaína ou crack. Esse total já foi considerado adequado para classificar o uso pelo ministro Luís Roberto Barroso em seu voto no Recurso Extraordinário 635.659-SP. O ministro apontou que, mesmo com uma quantidade objetiva estabelecida, o juiz poderá analisar as circunstâncias do caso concreto e fazer o enquadramento como tráfico ou porte para uso pessoal, conforme as demais provas dos autos.
Princípio da insignificância
Em alguns pareceres, os membros do MPF defendem ainda a aplicação do princípio da insignificância para quantidades ínfimas de drogas. E, embora o STF tenha reconhecido que esse princípio não se aplica ao crime de tráfico (por se tratar de crime de perigo abstrato), o Judiciário precisa considerar as mudanças registradas na sociedade, num processo de “necessária adequação e mutabilidade das normas e das decisões judiciais à evolução social”, como sustenta Luiza Frischeisen.
Ela lembra que, num caso relatado pelo ministro Gilmar Mendes que discutia o porte de 1,8 g de maconha, o STF considerou ser possível a aplicação do princípio da insignificância, tendo em vista a mínima ofensividade da conduta.
“Trata-se de uma questão complexa, que ainda está em aberto”, afirma Frischeisen. Entretanto, de acordo com ela, os posicionamentos já adotados pelos Tribunais Superiores são importantes passos que auxiliam na melhor interpretação dos casos concretos.