Fragilidade em lembranças pode ser motivo para absolvição de acusados de crimes

Wanessa Rodrigues

Você consegue saber com clareza de fatos que ocorreram há dois meses ou na infância? Na área penal, essas memórias são consideradas fundamentais. Uma pesquisa recente mostra que 90% dos policiais, defensores públicos, promotores e juízes atribuem grande importância ao testemunho na condução de processos. O reconhecimento na identificação de suspeitos de crimes é importante para o desfecho de 70% das ações.

Juíza Placidina Pires, da 1ª Vara Criminal
Juíza Placidina Pires, da 10ª Vara Criminal

De acordo com a pesquisa, esses dois procedimentos não seguem técnicas que garantam plena segurança na identificação dos suspeitos de praticarem crimes, pois se baseiam principalmente na memória, que é falha e pode ser afetada por fatores emocionais e gerar o que é chamado de falsas memórias. O trabalho foi coordenado pela psicóloga da Pontifícia Universidade Católica (PUC), em Porto Alegre, e pós-doutora em psicologia cognitiva, Lílian Stein, e tem o apoio do Ministério da Justiça e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Dois processos julgados pela juíza Placidina Pires, da 10ª Vara Criminal de Goiânia, exemplificam esse tipo de atitude. Porém, nos casos em questão, os acusados foram absolvidos, justamente pela fragilidade das lembranças das vítimas. Um deles é referente ao estupro de uma menina de apenas 4 anos de idade, que teria sido cometido por seu tio-avô.

Ao analisar o caso, frisou que não está duvidando da palavra da criança, mas apenas considerando a ausência de elementos probatórios seguras para embasar uma condenação. Ela explica que, pela sua pouca idade, a menina encontrava-se numa faixa etária de vulnerabilidade patente, vez que não possuía desenvolvimento cognitivo suficiente para compreender a dimensão do abuso sexual relatado. Além disso, lembra que seus pais estavam separados e disputando, embora não judicialmente, a sua guarda.

“Nessa linha de raciocínio é preciso considerar que o comportamento vingativo ou maledicente dos genitores durante a disputa pela guarda dos filhos, ou também de terceiros com laços familiares e afetivos com o menor, como padrastos, tios e avós, pode favorecer uma falsa acusação de abuso sexual devido a uma eventual alienação parental do menor”, diz.

Falsas memórias
Do mesmo modo, ela diz que a forma em que a criança é abordada a respeito do abuso, com perguntas afirmativas da violência sexual, e também o receio de abandono ou de punição física, podem induzi-la a adequar suas respostas aos questionamentos feitos, em função do sugestionamento de que quem lhe indaga, com a consequente implantação em sua mente de falsas memórias.

“A partir daí, por acreditar que foi abusada sexualmente, a criança (principalmente aquelas entre os 3 e 7 anos) passa a repetir o relato do alienante, assimilando-o como verdadeiro . No caso em questão, não foi realizada perícia psicológica em juízo, apenas na fase administrativa, ocasião em que os fatos ainda estavam ‘frescos’ na memória da criança. A própria psicológica, à época, concluiu que as representações mentais da criança não se encontravam suficientemente estruturadas.

Assalto
Em outro processo, a magistrada analisou o caso de um rapaz acusado de participar de um assalto no Terminal da Praça da Bíblia, em Goiânia. Ele foi reconhecido dois meses após o fato, por meio de fotografias. A vítima afirmou tanto na Delegacia de Polícia quanto em juízo, que, no momento do fato, o indivíduo que lhe assaltou estava usando capacete e que, embora a viseira estivesse aberta, conseguiu visualizar os olhos dele, conseguindo reconhecer o acusado porque ele era negro e estava utilizando as mesmas roupas do dia do fato.

A magistrada observou que, dois meses após o fato criminoso, é bastante improvável que o imputado estivesse utilizando, na fotografia, exatamente as mesmas vestimentas que o assaltante usou na data. Além disso, o rapaz, na oportunidade em que foi ouvido, negou veementemente a imputação e declarou que, na data constante na denúncia, encontrava-se preso na Central de Triagem, o que foi comprovado por meio de certidão carcerária.

Assim, conforme diz a magistrada, tendo em vista que o assaltante utilizava um capacete no momento do fato e que o reconhecimento na delegacia ocorreu meses depois, através de fotografias, é possível que a vítima tenha se confundido ao apontar o acusado como autor da infração penal. “O fato de o ofendido ter apontado o acusado, sem vacilação, como o autor do roubo, pode ser atribuído a bases cognitivas contrafeitas e induzidas, ou seja, a “falsas memórias”, talvez decorrentes do trauma de ser assaltado e da pressão psicológica de ter que apontar algum culpado pela prática do delito violento”, completa a magistrada. (Com informações da Agência Brasil)